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sábado, setembro 13, 2003

Fábula cruel 

Há uma história que costumava ouvir vezes sem conta quando era criança. Aliás, das muitas histórias que tive a felicidade de ouvir da boca dos meus pais, avós e ama, esta é a que recordo com mais intensidade, aliada a cheiros e sensações do passado. É uma história vulgar. Um menino que era pastor e tirava prazer de enganar os outros habitantes da sua aldeia. Costumava dar o alarme de que os lobos iam atacar, quando não havia qualquer perigo, só para se divertir a observar o medo e a pressa dos seus conterrâneos. Tantas vezes fez isto que, certo dia, os lobos estavam prestes a atacar e ele deu alarme. Pensando que era mais uma das suas mentiras, os aldeões resolveram ignorar o alarme do jovem pastor. Ele e todo o seu rebanho foi devorado pelos lobos.
Como todas as fábulas, esta tem a sua boa dose de crueldade. Mais ainda pelo final infeliz. Mais ainda porque é verdade. Mas cruel, sobretudo, porque é a única história da minha infância que continua a fazer sentido na minha vida de adulto. TR

A 

O indizível ministro José Luís Arnaut veio pedir aos jogadores da selecção nacional para se aplicarem no próximo campeonato europeu de futebol (como se isso não fosse obrigatório para Figo e companhia!), que estranhamente se realiza em Portugal. José Luís Arnaut não pediu apenas isto; fez ver aos jogadores que foi feito um enorme investimento, sobretudo em infra-estruturas, por parte de cada um de nós, contribuintes, e Estado, com a construção de dez novos ou reconstruídos estádios, de norte a sul do país, excluindo (agora sim, compreensivelmente) os dois arquipélagos. Não sei se os jogadores da selecção compreenderão este pedido do ministro e, tendo acompanhado os jogos amigáveis, creio que o futuro não augura nada de bom. O que sei é que estes grandiosos estádios parecerão ainda maiores quando o Euro terminar, quando os jogadores regressarem aos seus clubes e quando os adeptos famintos abandonarem o nosso país. Aí sim, haverá moscas a mais naqueles recintos. Para trás ficam milhões de euros gastos, contra todas as previsões e contra os custos previamente anunciados.
José Luís Arnaut podia ter aproveitado para pedir a Luís Felipe Scolari que explicasse aos nossos jogadores o significado da palavra "amigável". E podia ter ainda dito ao seleccionador que juventude equivale a rapidez e, no caso dos jogadores portugueses, a uma forma de jogar bastante mais agradável do que aquela que temos visto pela selecção A. Já agora, "A" de quê? De Arnaut: uma selecção fraquinha, por impossibilidade natural, inata.
HR

sexta-feira, setembro 12, 2003

Gabriel Alves por um dia 

Falta apenas uma semana para o início da época 2003/2004 da SuperLiga Marquesa de Alorna com patrocínio da Superbock e Marlboro. Trata-se do campeonato disputado no sumptuoso complexo desportivo da escola Marquesa de Alorna, à Praça de Espanha. Este troféu disputa-se desde há 4 anos, tendo nascido num tempo de trevas e ignorância que o nosso Miguel Romão apelidou de A.B. (antes dos blogues).
Todavia, algumas das estrelas mais cintilantes da Liga são hoje reputados bloggers nacionais que, apesar da fama e fortuna desta segunda carreira, não perderam o gosto por dar semanalmente uns valentes pontapés na chincha - sempre que, inadvertidamente, falham as canelas dos adversários.
Recordo aqui a segurança defensiva de um Rui Branco, a elegância estratégica de um Miguel Cabrita, a técnica apuradíssima de um Tiago Rodrigues, o killer-instinct de um Nuno Costa Santos, ou génio puro de um Henrique Gomes.
Quanto a mim julgo poder definir-me como um jogador tacticamente evoluído, com a vantagem de ter dois pés, que trabalha para o grupo. Ok, pronto... sou mais assim um híbrido de Fernando Aguiar com foca. Dito por outras palavras, sou o alegre possuidor da habilidade técnica do robocop do Benfica cruzado com os malabarismos que as focas fazem com a bola, num show digno de um aquaparque de primeira água.
A SuperLiga Marquesa de Alorna costuma terminar com o troféu cervejola de ouro, servido em grandes quantidades pelo rei dos barmen, o brasileiro Marcos do Madres de Goa (ex-Travessa).

Posto este post, tão essencial para a vossa felicidade como a leitura integral das Páginas Amarelas, cabe-me destacar - sem ironias - o portentoso blog Caderneta da Bola. Foi o Ivan quem nos alertou para estes heróis anónimos que se dedicam a escrever com estilo e humor as peripécias históricas de clubes como o "Barcelona do Marão" (sim, o Grupo Desportivo de Chaves) e seus maiores vultos. Craques como Paulo Alexandre e Parfait N'Dong. Estes tipos, acreditem, merecem toda a publicidade que lhes puderem dar. Para usar uma expressão da Caderneta: Mas por que carrinho a pés juntos é que ainda não foram lá ver? LFB

Assim se vê o futuro do PC. 

O PC tem um problema muito grave de identificação. Se Bernardino Soares, ao tentar defender Kim Jong Il, ainda foi desculpado pela sua juventude, não me parece que o mesmo possa ser aplicado às declarações, em tudo semelhantes, proferidas por Ruben de Carvalho acerca de Fidel Castro e de Odete Santos sobre Estaline, recordadas, recentemente, pela rubrica “As Coisas Que Se Dizem” do magnífico número derradeiro da Grande Reportagem mensal. A última festa do Avante! confirmou isso mesmo: pelos símbolos, pelas bandeiras, t-shirts e discursos.
A execrável extrema direita tem, ao menos, o cuidado de se afastar da figura monstruosa de Hitler, mas a estupidez imensa que impera na extrema esquerda nacional nem lhe permite perceber que a solução para a senilidade de que enferma não reside na invocação de responsáveis por um número de vítimas maior que o do holocausto nazi, mas por um de dois gestos muito simples: ou dão ouvidos a ideias novas ou, simplesmente, fecham a porta.
AB

Histórias de Nova Iorque 

A RTP teve uma boa ideia ao passar, na noite de ontem, o filme “Histórias de Nova Iorque”. Agrada-me a ideia de celebrar um lugar – sobretudo numa data que o marcou tristemente - contando algumas das suas histórias. Há por aí um blog, Abram os Olhos , que, desde o fim de Agosto, também tem contado histórias dessa cidade - histórias com mulheres, com sorrisos de mulheres, com sexo, com violência, com cocaína, com copos, com beatas e corpos no chão das casas, com armas, com sonhos, com coisas memoráveis a acontecerem todos os dias, com tudo isso dentro. Nestas histórias de Hugo Gonçalves tanto há boas pessoas capazes de desferir violentos golpes como há homens ricos que envelhecem em frente de quadros, enquanto esperam por visitas decadentes. Há homens colocados em situações-limite – boxeurs ao mesmo tempo implacáveis e carentes - ou simplesmente velhos hispânicos que acendem charutos, sentados em cadeiras de lona. E há sobretudo a dedicação a um sítio com todas as "possibilidades infinitas” - a uma cidade onde, por vezes, não lhe apetece escrever. NCS

quinta-feira, setembro 11, 2003

DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA VERTICALIDADE ORGÁSTICA 

O Dr. Eduardo Prado Coelho, já o sabíamos, é todo pela horizontalidade a fio.

Sucede que eu vinha partilhando da mesma perplexidade que assaltara João Bénard da Costa quanto à questão de saber em que consistiria o "orgasmo vertical" apontado por aquele colunista jornaleiro aqui há duas semanas (mais coisa, menos coisa).

Esclareceu-se-me ontem o significado da expressão, com a leitura da costumada coluna: para o Dr. Prado Coelho, um "facto vertical" é um facto "sem um antes e sem um depois".

O sexo "verticaliza-se", assim, por "aparecer desligado seja do que for", e "sobretudo desligado de uma ideia de paixão". Segue que o orgasmo vertical não é exactamente um orgasmo: "acaba por não chegar a ser sexual, na medida em que fica apenas num aquém da sexualidade que é o sexo biológico".

Para o Dr. Prado Coelho, como se percebe, só a linha do horizonte permite manter sempre em inquebrantável aliança as terrenas arremetidas dos corpos e os requebros celestiais e muito voejantes do "amor" (e por isso, agora o entendo, o aéreo Dr. Prado Coelho citava há uma semana o camiliano "voo de pássara").

É questão de escrúpulos, está visto: então haveríamos lá nós de poder ir aos glúteos de um(a) qualquer sem que houvesse fero "amor" em nosso peito?!

Ora eu já aqui uma vez telegrafei pelo desbragamento do sexo, que em nada entendo como menoscabo.

Bem ao contrário: essa verticalização do sexo, que o Dr. Prado Coelho observa e deplora, é sintoma de uma ligeira e notabilíssima revolução das atitudes que, de uma só penada, vai distinguindo os alhos sexuais dos bugalhos espirituais e amorosos, e bujardando as muito prolongadas hipocrisias desses pais de família que, acautelando sempre as aparências convenientes, foram dando de comer a várias gerações de putedo.

É que o sexo "biológico" (na expressão do Dr. Prado Coelho) é bastante como os ovos "biológicos" que se encontram à venda em qualquer supermercado: só ocorre se as galinhas forem criadas em verdadeira liberdade.

E acontece, de facto, que o efeito que esse "amor" exerce sobre o sexo tem muito de opilante e de vasoconstritor (o que, para além do mais, pode ser embaraçoso). O Dr. Prado Coelho há-de experimentar dar umas vassouradas nesses desmandos de espiritualidade amorosa: verá então como se sente mais desentupido, e até com mais apetite. Depois me dirá.

Grazinou ainda o Dr. Prado Coelho que por decorrência dessa verticalização do sexo "a ideia de amor" se tornou "de uma vulgaridade obscena".

Nada disso, nada disso. "Vulgaridade" há em julgar-se que a banalização do sexo co-envolve um enlamear das grandezas da alma às quais pertence o amor; vulgar (e, sobre vulgar, descortês) é pressupor que não somente o sexo carece do "amor", como que igualmente a "ideia de amor" não subsiste longamente sem a pinocada hebdomadária.

Em verdade, porém, o que se passa é que, separados com êxito "sexo" e "amor" (esses falsos siameses), poderão um e outro seguir independentemente suas carreiras.

O primeiro, um percurso vertical e bem erguido, e sempre apontando para cima, com a ajuda de Deus.

O segundo ("oiseau rebelle que nul ne peut apprivoiser", como cantava a outra), uma vocação de horizontalidade infinita, de uma pessoa se estender ao comprido. LDA

E você? Já escolheu o seu 11 de Setembro? 

Acho espantoso que a blogosfera, em vez de prestar homenagem às vítimas ou, simplesmente, evitar repisar um território tão exaustivamente percorrido, se perca, em pleno segundo aniversário do 11 de Setembro, em estéreis discussões – como quase, quase, sempre – acerca daquilo que entendem por esquerda e direita. Pior: conforme, tempos atrás, já NCS aqui caricaturava, a questão passa, por vezes, por demonstrar que se é mais de esquerda do que o outro, ou “a minha direita é melhor que a tua”, “tens uma direita que parece uma esquerda” e “com esquerdas dessas, quem precisa de direita?”.
Depois, acrescem-se à espécie as diferenças específicas: não é só a direita, é uma direita que pensa; não é só a esquerda, é uma esquerda libertária; a direita com jantes de liga leve e a esquerda com tracção às quatro. Brilhante!
E, de repente, de que é que se ia falar hoje? Do 11 de Setembro. Ah! É verdade! Morreram 3000 pessoas. Está bem, mas eram republicanas ou democratas? Eleitores activos ou cidadãos apolíticos? E Bin Laden? Já alguém lhe encontrou o cartão de militante? Estará recenseado sequer? Votou mais ou menos vezes que Pinochet? No 25 de Abril, qual deles subiu a um tanque?
E tu? De que 11 de Setembro é que gostas mais? Envia um SMS para o 4111 com a tua resposta! “11.09” seguido de “Chile” ou “E.U.A.” e habilita-te a ganhar um ano de quotas pagas no teu partido preferido!
AB

quarta-feira, setembro 10, 2003

Setembro 

No fundo, Agosto e Outubro têm é inveja de Setembro. Setembro é conhecido entre os outros meses como o mês mais politicamente correcto do ano. É o "mês totó". Em Setembro, somos todos muito amigos uns dos outros. Chegamos aos empregos e damos abraços e beijinhos e festinhas e perguntamos aos colegas, com um sorriso bronzeado, onde é que eles passaram as férias. Voltamos, então, à infância e fazemos redacções verbais sobre as nossas queridas férias para, por exemplo, o departamento de contabilidade. Em Setembro, há menos palavrões nas ruas. Um tipo que atravessa selvaticamente o seu carro à frente do nosso é "coitado, um indivíduo a precisar de ajuda, com um desenquadramento social assim a puxar para o problemático" (em Março seria, na melhor das hipóteses, "um palhaço", ou, no caso de o condutor ser o Pedro Rolo Duarte, "um blogger"). Em Setembro, até o Governo é menos castigado. Nos cafés, no meio do bafo de aguardente velha, ouvem-se conversas do género: "Quer dizer, os senhores ainda estão cheios de areia no corpo todo e já querias que estivessem a resolver o problema do desemprego?!". Nos lares portugueses, há, digamos, menos full contact quando o Benfica joga mal. Os maridos chegam tristonhos a casa com as más exibições do clube e vão chorar para o ombro das mulheres. Pronto, o máximo que pode sair das suas fragilizadas bocas é um "Ai, caramba!" ou um "Que maçada! Os rapazes são mesmo uns malandros...". Em Setembro, ainda há (pelo menos, na aparência) amor. O pior é que depois chega Outubro. NCS

Detesto dizer "do fundo do coração" mas o momento é agora. 

Poucas palavras: apenas para agradecer o gesto dos verdadeiros cavalheiros (e menina) que fazem esta equipa. Sabendo da voracidade intrínseca à produção num blog, torrencial e imediata, os amigos que me acompanham no DC fizeram o favor de deixar respirar o post anterior. Muito obrigado. E deixo-vos esta nota, como um abraço:

O padre que conduziu a cerimónia do funeral do meu avô foi quem me deu a primeira comunhão; o funcionário da agência funerária foi meu colega no liceu e fez rir a minha mãe com fait-divers desse tempo; o médico que conduziu a autópsia é um cirurgião cabo-verdiano sportinguista que me retirou dois quistos há uns anos e que, durante a operação, ameaçou voltar a pô-los dentro se não abandonasse o Benfica; e um primo que não vejo há 3 anos teve a coragem que faltou a todos (faltaria a mim) e ajudou os paramédicos com o corpo. Toda esta gente, como vós, tem classe. LFB

terça-feira, setembro 09, 2003

Edilberto Grimanez 

O único homem neste planeta de nome próprio "Grimanez" faleceu no domingo. No jeito incisivo do seu genro e meu pai: "o avô morreu".
Não chegámos a desmontar o tal rádio. Morreu o meu avô "engenhocas" e, à hora em que acordei com o telefonema da notícia, a televisão estava ligada. Num filme obscuro uma família cantava um "Happy Birthday" a alguém; num canal de documentários transmitia-se um parto real; noutro canal, de música, um grupo de roqueiros lamechas cantava "I'll sleep when I'm dead".
Que fique bem claro, o meu avô morreu. Não "faleceu". "Falecer", como "fenecer" ou "florescer", ou "amanhecer", são acções tranquilas. O Grimanez não estava tranquilo. Morreu porque quis.

Quando eu nasci tu só tinhas 47 anos. Quando o terramoto destruiu a casa onde vivia com os pais, fui para tua casa. Tinhas 50 anos. Uma das memórias mais vívidas da minha infância é o dia do meu 7ºaniversário, de mão dada contigo a passear na Praça Velha pensando que o número 7 era grande e bonito e continha poder. Como tu, que ainda só tinhas 54 anos.
Dizem que, ao aproximar-se da morte, os velhos recuam aos ficheiros antigos da memória. Suponho que, no quarto onde dormias sozinho com as janelas fechadas porque já não apreciavas a luz, tenhas feito essa viagem. Espero bem, avô, chegar aos 73 anos com a lucidez de espírito e a agudeza de raciocínio que soubeste conservar para então recordar com todo o pormenor a minha infância contigo, nesse tempo em que ainda eras alto e forte, e escutávamos os discos do Solnado, consertávamos rádios velhíssimos onde descobríamos - na onda média - as rádios mais estranhas que já atravessaram o Atlântico e, naquela arrecadação que transformaste no teu refúgio, me mostravas a tua colecção de livros proibidos pelo fascismo.
Sei muito bem o que fizeste. Tu, que sempre foste um esquerdalho dos duros, quiseste desafiar o tal gajo da maiúscula: "Vamos lá a ver se és assim tão misericordioso, meu Sacana".
Acredito que o dito cujo te recebeu com o abraço que só os orgulhosos sabem oferecer aos seus iguais.
Por falar nele e no tal rádio que não desmontámos uma última vez, deixa-me maçar-te com uma história que aconteceu ontem: no estilo desastrado que bem conheces, tropecei no fio de um telefone aqui no trabalho e o aparelho fez-se em cacos no chão. Peguei nele e remontei pacientemente aqueles fios coloridos, as borrachas, as chapas condutoras, os chips precários que se escondem no plástico e o telefone - vê só! - funciona como dantes, na perfeição. Desculpa que te diga, mas são estas coincidências que me fazem acreditar em Deus.
Sabes o que é lixado? É tu morreres a 1500 kms de distância e, no dia do teu funeral, hoje, ver-me obrigado a estar em Lisboa, porque foi o dia de escrever e entregar umas piadolas para um programa de rádio.
Poupo-te, todavia, a reflexões banais sobre as ironias da vida.
Reconforta-me saber que o teu caixão tem 1,90m. Que foste vestido pela minha mãe. E que voltaste, por um dia, a ser grande e forte e belo. E deixaste de sofrer.
Não cheguei a explicar-te isto dos blogs mas gostava que tivesses lido o texto que te dedicou o Paulo Alexandre. Se não fosse por mais nada, o texto dele e estas palavras valeriam este hobby electrónico. É que escrevo sobre ti neste preciso sítio porque há várias pessoas que te amam que vão ler estas palavras e reconhecer-se nelas. Tinha até pensado em deixar uma sugestão aos candidatos a Nuno Rogeiro que andam pelos blogues a escrever funebrices sobre vultos internacionais com quem nunca se cruzariam como se tivessem partilhado com os fulanos dois ou três cafés da manhã. Pelo menos. Mas, enfim, esse comentário incluiria um palavrão que nunca ouvi da tua boca. Não merece, por isso, a pena.
Deves ter acabado de ser enterrado. Se não te importas, continuo a preferir a ideia de ter as cinzas espalhadas numa baía de Angra - por muito filme-de-domingo-à-tarde que isso seja. Este tem sido, a nível pessoal, um ano miserável. Tu não sabes mas até nisso foste delicado. Escolheste este ano e deste-me finalmente uma digna razão para chorar. Aprendi a lição, tão cedo não voltarei a desperdiçar lágrimas.

Vais descansar em paz.

Luís Filipe

Être sans destin 

Leio este autor, Kertész, último Nobel da literatura, com dois livros traduzidos para português: "Ser sem destino" e "Kadish - Por uma criança não nascida". Húngaro judeu, depois da sua experiência concentracionária recusa-se reconstruir a sua vida em moldes ditos "normais", recusa a reprodução de vida num mundo que permitiu a existência de Auschwitz.
Uma só coisa lhe interessa por lhe permitir continuar a viver sem viver, essa coisa é escrever. A escrita é, de facto, uma vida sem vida, é : "cavar no ar ou nas nuvens ". É a arte pela sobrevivência, a troco de alguma sanidade mental.
A escrita serve para recordar o nosso saber, para ir descortinando na vida não uma mera sucessão de acasos, o que seria uma visão indigna dela, mas um progressivo reconhecimento, um reconhecimento que leva a um mais amplo reconhecimento, afastada que está a esperança de a escrita encontrar explicações já que "o que acontece é um motivo inteiramente suficiente" e "todas as explicações, finalmente, aniquilam os factos".
Mas a verdade é que K. não desiste de procurar explicar o que aconteceu e perceber a natureza do homem: "E finalmente eu poderia ter dito que não há explicação para Auschwitz, que Auschwitz seria um produto das forças irracionais não apreensíveis pela razão... derivadas de algum interesse, da ganância, da cobiça de prazer e de poder, da covardia, da satisfação de um ou outro instinto e, se nada além disso, então de algum delírio da paranóia, da doença maníaco depressiva, do sadismo, do assassinato compulsivo, do masoquismo, ou megalomania demiúrgica, da necrofilia, de alguma entre as tantas perversidade que conheço, ou talvez de todas ao mesmo tempo, porém, o realmente irracional e o efectivamente inexplicável não é o mal, ao contrário: é o Bem. Exactamente, por isso, há muito não me interessam o Fuhrer, chanceler do Reich...não, em vez da vida de ditadores há muito interessa-me unicamente a vida de santos, pois as acho interessantes e incompreensíveis, para tal não acho nenhuma explicação meramente racional..." CMC

Eu, o paciente ingrato. 

Almoço com um grande amigo, interessado nas temáticas da Psicologia e da Inteligência Emocional, e ele tenta deslindar e explicar-me a aparente contradição entre a minha frieza e a compreensão das emoções que me costumam atribuir. Pergunta-me pela minha relação familiar, pelo meio em que cresci, pelas razões por detrás das opções que tomei. Justiça lhe seja feita: o que disse, sendo ou não o caso, pelo menos, fez sentido. Foi a primeira vez que me aconteceu. Mas, em geral, enervam-me bastante as conclusões da Psicologia, as leituras simplistas que faz, enquadrando todo o indivíduo numa das colunas de uma tabela pré-definida, recusando a natureza individual nascida com cada ser, como se as almas se traduzissem em aritmética simples ou não fosse o caso de a única certeza que alguma vez teremos sobre a vida, comprovada empiricamente, ser a de que não existe um só homem igual a outro.
Agradeço ao Gustavo o seu esforço e insisto que o que disse faz, de facto, sentido (até porque nos conhecemos há bastante tempo e ele não fazia, desde logo, a sua análise na aridez das Ciências Humanas), mas vou continuar a achar que um olhar verdadeiro percebe melhor o indivíduo diante de nós do que dez anos de Psicologia.
AB

Estrangeiro na Quinta da Atalaia 

Durante dez anos não falhei uma Festa do Avante. Houve aquelas em que estive lá os três dias, também as houve em que só pude estar presente durante um par de horas. No entanto, desde os 16 anos que fazia questão de não falhar a Festa do Avante, apesar de não ser militante ou simpatizante do PCP. Desde que frequento a Festa que rotulei de chatice ser permanentemente chamado de camarada (às vezes, muito raramente, até é simpático...), levar com a cassete propagandística ou o som irritante das centenas de jambés e respectivos auto-proclamados percussionistas... tudo isto eram pormenores que não pesavam na balança onde eu colocava os concertos, a atmosfera de convívio, o encontro de amigos, a fraternidade, a agitação cultural e a excelência gastronómica e etílica dos três dias de Avante. Aliás, gabo-me de ter convertido para a Festa muitos amigos e conhecidos, alguns até de direita (pelo menos, eles pensam que o são). Resumindo, durante uma década sentia-me em casa quando estava na Quinta da Atalaia.

Só pelo que acima vos expliquei é que me sinto na necessidade de justificar porque é que este ano não fui à Festa do Avante. Começo por ilustrar a coisa com uma pequena anedota que, apesar de não ter muita piada, parece-me coerente. Há dois tipos de anti-comunismo: o básico e o superior. O anti-comunismo básico é o da Direita. O anti-comunismo superior é o do Comité Central.
Este ano não fui à Festa do Avante porque os pratos da balança se desiquilibraram. Se antes podia dizer que ia à Festa «apesar» do PC, este ano não o podia fazer. Já não bastava acreditar que a Festa é mais da esquerda do que do PC. A Festa é, objectivamente, do PC. E este ano, sobretudo vendo-me como um indivíduo de esquerda, participar num evento do PCP era impossível. Por muitas desculpas que tivesse. Não acuso aqueles que, partilhando o meu ponto de vista apartidário em relação à Festa, foram este ano. No entanto, em consciência, eu não o poderia fazer. Tenho a certeza que as bandeiras vermelhas me pareceriam negras do luto por João Amaral. Tenho a certeza que a homenagem a Ary dos Santos me seria repugnante porque o que o PC devia fazer em relação a Ary era um pedido de desculpas pela forma como o maltratou em vida (um pedido de desculpas à semelhança da Igreja Católica em relação a Galileu). Tenho a certeza que o comício me pareceria um playback de alguém que sabe que está a ostracizar as mentes mais interessantes de um partido cada vez mais desinteressante. Tenho a certeza que o discurso pró-Fidel e os mojitos me saberiam à pólvora seca dos fuzilamentos que nem José Saramago conseguiu aceitar. Tenho a certeza que, este ano, eu seria um estrangeiro na Quinta da Atalaia. TR

os sustos que eu já apanhei com isto do blog 

Uma pessoa como eu, que percebe tanto de informática como o Futre percebia de física quântica, treme de pânico de cada vez que, por insondáveis contingências do destino electrónico, um belo dia - por exemplo - só se vê o cabeçalho, noutro os textos estão todos a negrito, noutro ainda é o cursor que não mexe, o site meter que desaparece ou a entrada no DC que demora mais a processar que um raciocínio de Luís Delgado. Um totó dos computadores com a mania da perseguição imagina logo cenários apocalípticos de vírus mal-intencionados e tentativas de sabotagem dignas de uma Al-Qaeda dos blogófilos-anónimos. Sim, sou um cretino.
A última cabala foi o curioso facto de, desde há dois dias para cá, o Blogger ter passado a ignorar ostensivamente a minha password o que me obrigou a pedir ao NCS que me expulsasse do DC para me reenviar o convite e repetir o processo de iniciação - salvo seja. Posso dizer-vos que os 3 minutos passados fora da blogosfera foram como férias no campo, tranquilos e bucólicos e, em nenhum desses 180 segundos de pausa, senti saudades do vício.
Enfim, cá estou de cara lavada e nova password, esperando ainda que o amaricado posted by Lu? seja condignamente substituído pelo meu primeiro nome sem acento. A ver vamos. LFB

O dia acaba quando adormeço 

Ao contrário de alguns tecnocratas da blogosfera, eu acredito que o dia só acaba quando adormeço. Por isso aqui estou a botar sentença na noite que ainda chamo a noite de segunda feira, apesar de os calendários insistirem em chamar-lhe a primeira hora do dia de terça. Só para que fique registado. Dentro de momentos, volto com algo minimamente importante para dizer. TR

segunda-feira, setembro 08, 2003

Confissão de um blogger 

Recebemos um email de um blogger que não se quis identificar e que pediu para publicarmos um texto seu. Este animador cultural de um blog encontra-se, neste momento, em recuperação numa clínica. Desejamos as melhoras ao paciente.

"Meus amigos, eu queria fazer aqui uma confissão pública gravíssima. Sei que vai chocar muita gente e que nunca mais serei respeitado pela blogosfera (e pelo homem do gás também). Estou preparado para isso. Sei que é indesculpável. Vocês nunca me vão perdoar. Eu próprio estou chocado. Digo mais: ando a praticar um crime que deveria significar a expulsão de qualquer pessoa, de qualquer bom pai de família dos blogs, este universo de amor, amizade e guerra no Iraque. Por causa deste acto hediondo nunca poderei ser um de vós. Nunca poderei entrar para o clube. É a vida - eu também é que me armei em totó. Fui várias vezes avisado pela minha mulher, pela mulher da mercearia e pelo rapaz das pizzas. A responsabilidade é toda minha. Meus caros bloggers, eu tenho de dizer isto, sob pena de não estar a ser sincero comigo mesmo. Sei que é horrível, mas a verdade é que eu...eu...nunca.... Vou dizer: eu nunca li Nelson Rodrigues. Pronto, já disse. Sim, eu mereço: podem-me bater à vontade". NCS

É só invisibilidade. 

Grande parte do drama de estar vivo reside na discrepância das datas de nascimento. A humanidade deveria ter sido dada à luz de uma vez só, toda, inteira, como uma empresa que se forma, uma equipa que nasce, sementes que se deitam à terra para fazer o mesmo jardim. E não como uma escola, em que há anos, veteranos e caloiros, repetentes e meninos-prodígio. Por mais velhos que sejamos, chegámos sempre tarde. Quando estamos no primeiro ano, há sempre alguém que já é finalista. E alguém que acaba daqui a dois anos. E alguém que acaba de acabar.
Inventámos a História, os filmes, as fotografias, os livros e as cartas, sessões hipnóticas de regressão e contos infantis. Ensaiámos, algumas vezes, obras para o eterno. Mas jamais conseguimos disfarçar o essencial: que chegámos demasiado tarde ao mundo. Já não vimos o dilúvio nem a Pangeia, Alexandre nem Maomé. Não encarámos o nosso trisavô. Não demos conselhos ao nosso pai sobre como conquistar a nossa mãe.
Pior: nós chegámos a meio. Muitos artistas já estavam em fase descendente, muitos homens bons já eram velhos. Deles tivemos apenas direito ao final. Quando quisemos fumar uma cigarrada com eles, já tinham deixado o vício; quando os convidámos para uma jogatana de bola, já tinham medo de cair; quando sugerimos comer uns petiscos noite fora, já o médico lhes havia proibido os excessos; quando escrevemos um livro, já tinham demasiadas dioptrias.
Porque não começámos a correr juntos, rebentámos no mesmo quintal, saímos multigémeos do ventre imenso de Deus? Porque não aprendemos a ler como companheiros de carteira, fomos padrinhos dos casamentos uns dos outros, levámos as crianças ao Zoo na mesma tarde de domingo?
E, no final, ampararmo-nos-íamos na sala da espera do único hospital. Ninguém choraria as doenças e as mortes. Cairíamos juntos, de uma só vez. E o vento e a chuva fariam o seu caminho, ao longo dos séculos, lançando o pó da terra sobre nós, num funeral longo, natural, silencioso, tranquilo.
Mas não. Chegámos tarde. Já não pudemos dizer ao nosso avô que lhe estavam a nascer os primeiros pêlos de barba, nem passar-lhe uma rasteira para impedir o golo, nem fazer apostas sobre qual de nós resistiria mais tempo solteiro.
Que tenha Deus isto em conta no próximo mundo que crie. Que toda a gente deva nascer e morrer ao mesmo tempo. Entretanto, no Céu, proíbam-se as rugas e os bilhetes de identidade.
Avô, vai aquecendo aí com o pessoal e escolhendo o teu lado do campo. Quando eu chegar, vai haver futebolada. Se já for de noite, joga-se um xadrez.
Começas tu.
AB

25 de Abril sempre? Ou só depois da meia-noite e com uma powerbox? 

Diz que houve escolas a receber cassetes editadas na RTP com documentários sobre o 25 de Abril e algo mais.
Imagino o clássico menino Joãozinho a perguntar à professora:
"Ó setôra, o Marcelo Caetano é aquele que tem as calças em baixo e o povo são os mais pequeninos, não é?" LFB

domingo, setembro 07, 2003

Na casa onde todos dormem 

Devo começar por pedir desculpas. Há cerca de um mês que não escrevo. Agosto foi um mês de trabalho muito duro. Além disso, só a semana passada é que instalei net em casa. Espero a partir de hoje tornar-me regular contribuinte do DC. Para os que procuraram textos meus em vão, envio as minhas desculpas e o conselho de que procurem leituras mais dignas. Mesmo aqui no DC é fácil encontrar pelo menos onze autores mais interessantes que eu. Destaco sobretudo o lobby açoriano que, durante o mês passado, quase transformou o DC num blog local ou na ementa de uma semana gastronómica de S. MIguel e da Terceira. Para aqueles que não querem perder o vício do lixo literário, estou de volta. E agora com o desafio colocado a mim próprio de escrever diariamente. É que aconteceu tanta coisa e acontece tanta coisa todos os dias, que seria imperdoável não transformar tudo isso em um pouco mais de lixo cibernético umbiguista e inútil.
Começarei amanhã por explicar porque é que não fui à Festa do Avante este ano, apesar de ter frequentado todas as edições na última década. Por agora, devo parar de teclar. O som da escrita é demasiado nesta casa onde todos, excepto eu, dormem a sesta da tarde. Ficarei a olhar para as belas adormecidas que aceitam partilhar o mesmo tecto comigo. TR

Dupre 

Há um novo, novíssimo, blog português: www.orlandodupre.blogspot.com.

Jogadores de futebol 

Se o Luís Figo voltasse a ser humilde e percebesse que (ainda) não tem idade para ser tão pesado de pernas (o Teddy Sheringham é o melhor marcador da liga inglesa); se o Sérgio Conceição e o Fernando Couto se lembrassem do seu comportamento exemplar no último Mundial e do que significa, enfim, "amigável" - pois foi de um jogo amigável que se tratou; se o Pauleta voltasse a jogar como jogava (melhor jogador do Bordéus e da liga francesa, nos últimos anos); talvez assim Portugal tivesse perdido apenas por 1 a zero, frente à Espanha.
As duas selecções têm em comum a qualidade dos seleccionados, mas a portuguesa fica a perder com jogadores plenamente convencidos de que são verdadeiras vedetas do mundo deste pobre espectáculo que por vezes é o futebol.
HR

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