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sábado, junho 14, 2003

HISTÓRIA UNIVERSAL DO PORTUGUÊS, ou como o carro chega sempre antes dos bois (vois, aqui no porto) 

Há dias houve evento musical no estacionamento da casa da música, este icónico balde de cultura musical ainda em construção. Visitei a obra há um mês a convite da isabel, colaboradora dos autores do projecto. Fiquei oblíquo com a follie interna do futuro auditório, devo admitir que admiro sempre o desconcerto humano típico de fins de século. Faz bem à perene dúvida domingueira: o que fazemos, quem somos, para onde vimos, quem centrou, sais da frente, porra.. ?
Levanta-se-me a hipótese; e se todos os estaleiros, empreitadas e remuramentos agora decidissem seguir este vetusto exemplo?
Teríamos, porque não, um jogo de futebol entre os infantis dos plácidos da amuralha e uma seleção dos ex-treinadores do mundial do méxico 86 na cantina do estaleiro do futuro estádio da luz. Com transmissão na sic-toura e os comentários inéditos de Gabriel Alves, o opíparo, entre sandes, sardinhas e trolhas, com vigas metálicas voadoras a servir de béquegraunde, ou balizas.
Ou ainda, quem sabe, a entrega dos Nóbeis ou Nóbéles, um mês antes, nos camarins da delegação da academia Sueca em Grozny. Todos em jeans e t-shirt e o porteiro da discoteca gay local, vestido de Travolta versão grená, a fazer de Rei...quer-se dizer... Parece-me, porque não é de hoje nem de ontem que cá ando, que os portugueses continuam a ser os bandeireiros da excitação precoce. A frenética ânsia de fazer e mostrar sempre antes do tempo, pontuada com a complacente descida ao abandono de propósitos uma vez pronto para arrancar o que quer que seja a que se propuseram...
Vejo até o abrunhosa acorrentar-se aos portões metálicos do estaleiro, prevendo a futura tentativa de compra em 2015 pela igreja universal dos polidores de frigorificos.
Empreiteiro amigo, quando desmantelares obra não desaparelhes o raper-tenor, envia-o antes com o gradeamento para o futuro mercado de legumes e frutos secos de Hazar-a-Jatt, Afeganistão, obra que certamente ecoará baixinho história até aos Urais. "uma tâmara acessa, a courgete que passa..." BR

Seremos só nós hoje no mundo? 

Luigi, obrigado pelo teu obrigado, estou grato pelo teu post de acolhimento.
É impressão minha ou seremos só nós aqui nesta pétala de blog? que é feito dos tarzans, dos faquires e dos despudorados domadores de palavra que deveriam estar a ferver os dedos nos teclados deste país? Vai ver têm sogras, ou animais para passear...uns corais. BR


DE GINGER LYNN A HOLDERLIN 

JENNA JAMESON

Lembro-me bem do dia em que "conheci" Jenna Jameson. O mais tímido dos meus amigos, depois de meia garrafa de whisky e um xanax, lá ganhou verve e desenvoltura para ir ao clube de vídeo sacar um filme X cuja capa apresentava esta portentosa loura falsa com grande trabalho de cirurgia plástica na zona esternal. Todavia, Jenna não é uma loura falsa com grande trabalho de cirurgia plástica na zona esternal qualquer: tornou-se uma das rainhas, senão "the one", do porno americano. Não houve profissional do meio, desde o saudoso Ron Jeremy até ao mais pueril galifão que não tenha em Jameson molhado o pincel. Dois pormenores curiosos: aparentemente, a menina não faz sexo anal - coisa peculiar numa indústria tão liberal como esta - e isso contribui certamente para o seu estrelato. Segundo, transformou-se num ícone pop. Estima-se que faça qualquer coisa como 100 vídeos por ano e já foi capa de revistas insuspeitas como a Vogue, GQ ou outras dessa estilosas armadas ao pingarelho, cultura pop, pós-modernismo e tal.

Jenna Jameson pode ser vista, por exemplo, a acordar ao lado de Eminem no clip em que apregoa estar de volta e perde mais tempo a deitar abaixo o Moby do que aquilo que, estava à vista de todos, mais o merecia.

Enfim, Jenna - para utilizar um chavão de reportagem televisiva - dedica-se de corpo e alma ao seu trabalho e ainda tem uns bons anos de carreira. Último detalhe: há um filme em que eles são bombeiros e assim, vão-me desculpar que não recorde o nome, em que a nossa JJ, além de diálogos com mais de 5 minutos, tem uma cena em que chora lágrimas de crocodilo que fariam a Nicole Kidman devolver o óscar à Academia.

LFB

RUI TEIXEIRA FAN CLUB 

Esta discussão à volta da indumentária do juiz Rui Teixeira a modos que me deixa mal-disposto. Em primeiro lugar, a comunicação social devia ter o bom senso, para não dizer ética elementar, de não mostrar a carantonha do senhor. Não por causa do "tonha" no "cara" mas porque, simplesmente, não temos nada a ver com o sujeito nem ele tem nada a ver connosco. É juiz, ponto final. De certeza que, no tribunal, veste uma toga e se calhar até enfia uma peruca à Elton John mas problemas que cheguem tem ele. Escusa que os media o iluminem como alvo fácil (exemplo extremo foi o do pasquim 24 HORAS que até publicou a morada do indivíduo!).
Por outro lado, esta celeuma estéril recorda-me os aziagos costumes da Faculdade de Direito de Lisboa. A obrigação consuetudinária de vestir fato e gravata nas orais. Por amor da Santa da Ladeira! Rigor, Imagem da Justiça?! Não sejamos hipócritas. E se vamos fazer tempestades porque o homem usa t-shirt e calça de ganga porque não levar esse argumento até ao fim e exigir que o Teixeira emagreça e faça um implante capilar?

LFB

POST-BLITZ 

Se preferes a técnica redonda do Von Karajan à irreverência ingénua do Bernstein vai mas é encher a boca de merda! Próps pó people da Sinfónica! Concertos para a Juventude Forever!!

ENLARGE YOUR CHEF SILVA 

A Cabaça da Estefânia,

Rua Cidade da Horta, Lisboa

Pois. Seria de esperar que, para inaugurar esta rubrica, se escolhesse uma primorosa receita ou um restaurante de estalo. Nem estalos nem primorosas, a vida está cara: venho falar-vos em particular de uma alheira de mirandela de bradar aos céus que custa, neste restaurante, 3,5 euros. É isso, 700 escudos para não haver confusões.
Trata-se de um restaurante familiar, na tranquila zona da Estefânia - perto do jardim Cesário Verde, onde é garantido que nos atendem com um sorriso. Agora vem a parte que o João Gobern não podia escrever mesmo que o pensasse: tem óleo a mais, batatas fritas a mais, um ovo queimado nos rebordos, mas é bom! Aconselha-se as azeitonas de entrada, um fininho do mais bem tirado que há pela capital, e uns amigos à mesa. Se forem jantar, levam com a televisão ligada numa das 1432 novelas da TVI o que significa que ainda se dão umas boas gargalhadas sem precisar de fazer conversa.

LFB

CÉNICO DE DIREITO 

O mais antigo grupo de teatro universitário de Lisboa visto num texto sentido do seu actual director.


Subimos e descemos umas escadas. Escuras. Andámos à procura de adereços entre velhos materiais que brilharam, noutras alturas, sob o palco. É a sala do Cénico na FDL, com os dias contados: uma catacumba nas profundezas do anfiteatro 1 onde as quatro paredes se confundem com as extintas caldeiras. É tempo de preparar mais um espectáculo na faculdade, quando se transfiguram - as paredes cinzentas onde ecoa o direito - em sala de teatro. Com ou sem pancadas de Molière.
Estar no Cénico tem a ver com quarenta e tal anos de dramaturgos renascidos; peças estreadas; textos amarrotados; nomes como Luis Miguel Cintra, Morais e Castro, João Grosso, Lúcia Sigalho, Pedro Wilson; milhares de quilómetros de estradas; dezenas de cidades; centenas de substantivos próprios; toneladas de adereços; festivais em nome de Portugal, e em nome próprio, pois então!, em nome da faculdade, também. Tem a ver com uma história, muitas equipas de produção, suficientes fracassos para inúmeros êxitos.

As mãos fecham-se sobre a capa. Outra sugestão, mil ideias. Acabo de ler mais uma peça e começo a imaginar as outras vidas dos nossos actores. Como seria? Como seria se fossemos nós? Seremos nós?

O Cénico guarda o seu prestígio a sete chaves no coração dos seus actores. Malaquias de Lemos foi o fundador, morreu no dia 1 de Janeiro deste ano. Queremos muito à poeira dos palcos, queremos mais à sua limpeza, à transformação, à confusão de um cenário transtornado no fim de mais um espectáculo. Ser Cénico são aplausos. Tanto tempo, tanto suor, para o fim, esse fim que é apenas um começo (mais um!) e que são as palmas, as ovações, os comentários, as críticas, o dia seguinte.
Esse fim vem depois do mais importante.
A tua pele não é a tua pele, a tua roupa não é a tua roupa, deixa aqui o teu sangue, esses problemas. Agora veste a tua pele, a nova, sente a tua roupa, bebe deste sangue, eis a nova vida e a nova morte, novos problemas e alegrias; és um actor. És um homem, uma mulher, um velho, uma criança, um santo, um assassino, um irmão, um anónimo, um desaparecido. A vida guardaste-a no saco que ocupa um pequeno espaço nos camarins. A vida apresenta-la sob um estrado onde desfilam emoções, silêncios, inevitáveis gritos que preenchem memórias colectivas, e a tua mão encerra a tua mão e ambas remoem a alma de outros homens, os que foram escritos e os que vêem.
Esse fim, as palmas, vem depois do mais importante. Das almas, do trabalho com o Pedro, o Wilson, vem depois de muito stress, correrias encontrões reuniões dinheiro que não chega, esse fim vem depois do princípio que se anseia por repetir, ano após ano, sala após sala, público após público, texto após texto, personagem após personagem, cidade após cidade, meta após meta. As nossas bocas, os nossos corpos, os nossos gestos, os nossos olhos são as ferramentas, a nossa oficina é o palco. Quem poderá viver mais do que uma vez?
Esquecer o direito, equilibrar a balança e o compasso que marcam os nossos dias. Estar no Cénico é estar noutro lugar. Além.

Abandonamos o mundo, um pouco. Escrevemos versos. Voltamos. Partimos. Não cessamos de rir. O palco também é morte. As personagens custam a partir. Não as lágrimas.
Venham outros fins e outros princípios. Por esta ordem. Novos actores, novos ensaios. Outras salas, outras cidades. Outros versos, outras noites, mil e uma noites nos dois dias de vida. Restam as outras vidas dos deuses dramaturgos que brincam com os fugidios homens que nós somos e, por breves mas plenos instantes, nos permitem tentar a imortalidade.
Estar no Cénico é ser de uma determinada maneira: Amante - de aprender, de crescer, de dançar, de correr da boca de cena ao pano de fundo, que é como quem diz, de uma ponta a outra do mundo. Logo, é ser amante de viajar. De ensinar, um dia. Porque todos seremos importantes mensageiros de uma nova que dará frutos em... peças de teatro, em novos actores, talvez até mesmo em salas de tribunal, nas relações humanas, nos problemas com que havemos, forçosamente, de lidar.

Na verdade, não é só de Teatro que vos falo, não é só de pisar palcos que aprendemos, pois o Teatro é o pressuposto óbvio, o imperativo, o que amamos e nos une. Aquilo a que me refiro, é o que recebemos de presente, é o que aprendemos: é o que nos dá o palco, os amigos, o trabalho, o texto, as personagens, o tempo, os versos; é uma energia inesgotável que nos devolve à realidade e que se chama "amor".

Henrique Gomes

PORQUE É QUE (OS HOMENS) SE ESQUECEM DA DATA DE NAMORO? 

Pois é. Não consigo dormir. As directas dão-nos para baboseiras como a de tentar responder à pergunta do título. Enfim, na única relação da minha vida em que houve aniversários para festejar, tinha uma óptima desculpa para me esquecer do "dia": começámos a namorar à meia-noite de 21 para 22 de Janeiro – não tenho caracteres suficientes para vos contar em que circunstâncias... – pelo que conseguia sempre safar-me airosamente das repreensões da cara-metade...
Razões para nos esquecermos dessa data:

a) uma maratona de "Ficheiros Secretos" transmitida no dia;
b) o aniversário da sogra (se ela for tipo Raquel Welch);
c) ser dia de Natal;
d) se, no anterior aniversário de namoro, ela lhe tiver oferecido a última edição do "Guia Católico para um Matrimónio Feliz";

Seja qualquer for a razão, caro público feminino (apeteceu-me tanto escrever "eleitorado")... não nos perdoem! Já é demasiado fácil ser homem – façam-nos a vida negra! Não há nada como um bom desafio. E uma prenda com significado. Mesmo que seja "só" um poema, não esquecendo Garcia Lorca:

"Ainda está por fazer um poema que atravesse o coração de lado a lado como uma espada".

Luís Filipe Borges

CONSELHOS PARA FUTUROS GUIONISTAS 

O Hugo Rosa andou a ler o Doc Comparato, "Da Criação ao Guião", que não é genial mas consegue ser um manual bastante didáctico. Aqui fica o seu resumo, pronto-a-servir, de regras básicas do guionista. Com a escassa informação que existe sobre o mundo dos argumentistas, isto só pode ser considerado serviço público.


Doc Comparato, Da criação ao guião


A abertura de um guião deve ser fascinante; o final, surpreendente. Porém, o verdadeiro talento do guionista reconhece-se no desenrolar da parte central.


Telefilme
Deve ter uma duração de 80 a 90 minutos, o que corresponde a cerca de 90 folhas standard (Courier New, tamanho 12 e espaço duplo).
Na televisão o tempo de atenção é de 3 minutos (2 a 3 páginas do guião) – é esse o tempo que, em regra, cada cena deve ter (vd.).


Ideia
Conflito – story line
Personagens – perfil
Acção dramática – estrutura
Tempo dramático
Unidade dramática – guião final


SINOPSE (2 a 5 folhas): temporalidade, localização, perfil e decurso da acção dramática (quando, onde, quem e qual)

QUANDO + ONDE + QUEM + QUAL = ARGUMENTO OU SINOPSE = ACÇÃO DRAMÁTICA
COMO
COMO = estrutura:
1º conflito; 2º crise; 3º resolução – epílogo (é explicado o porquê da história)

Função da acção dramática: apresentar o drama, despertar o interesse, manter esse interesse e aumentar esse interesse.

Protagonista (e actores secundários) + Acção (história) + Plot ( o como) = Acção dramática


Plot: forma dramática; princípio, meio e fim (totalidade; unidade; deve ter credibilidade, probabilidade e necessidades humanas
. plot principal
. subplot (linha secundária de acção)
. multiplot
. plot paralelo


Forma da sinopse: capa com o título, nome do autor, data e registo; uma segunda folha pode conter a story line; depois, algumas páginas nas quais se desenvolve o perfil das personagens principais; finalmente, um último texto em que a história é contada já entrelaçada com as personagens.


QUEM
Factores a considerar na configuração da personagem:
- factor físico (idade, peso, altura, cor do cabelo, presença);
- factor social (classe social, religião, família, nível cultural, trabalho que realiza);
- factor psicológico (ambições, anseios, frustrações, sexualidade, perturbações, sensibilidade, percepções).

Perfil da personagem
1. Como é a personagem? Descrição física. Personalidade.
2. Como pensa e fala?
3. Onde vive? Com quem e em que circunstâncias?
4. Onde trabalha? Que faz para viver? Como é o seu meio familiar e amigos?
5. Tem alguma peculiaridade?
6. O que pensa da vida?
7. Como acha que vai ser a forma de actuar dele/dela perante os problemas?
8. Quais são os seus conflitos, valores e sentimentos em jogo?
9. No final, o que é que terá mudado?

O que quer a personagem; o que precisa; o que consegue.


VALORES DRAMÁTICOS
O problema fica claro logo no princípio da estrutura? É realmente um problema importante? Quantas cenas serão necessárias para expor o problema?
A história é verosímil? Existe credibilidade no plot?
A crise está bem colocada dentro da estrutura dramática? É crucial? É efectiva? A personagem tem motivos para estar em crise?
O conflito-matriz é a base central da estrutura?
O clímax está no sítio adequado, isto é, no final? É dramaticamente forte?
A resolução é satisfatória? Deixámos algo pendente na estrutura?
A maneira como desenvolvemos a estrutura resultou criativa, harmoniosa e convincente?


TODA A CENA TEM UM OBJECTIVO DRAMÁTICO, UMA RAZÃO DE SER, UMA FUNÇÃO DRAMÁTICA
Tipos de cenas
Há dois tipos de cenas: as essenciais e as de transição e de integração.
São cenas essenciais as de:
.exposição (de um motivo, de um problema);
.preparação (informação de complicação que virá mais tarde);
.complicação (preparação para o clímax);
.clímax (cenas obrigatórias);
.resolução (terminais ou de conclusão).
A ordem não é necessariamente esta, isto é, a estrutura é maleável.
São cenas de transição e de integração as intermediárias, que servem para ligar as cenas essenciais.


TOM: indicação não específica para chamar a atenção do actor e fazê-lo compreender que é necessária uma leve modificação na intensidade dramática. (tom)
PAUSA ou TEMPO: instante de silêncio (respiração) no diálogo. (pausa)
INDICAÇÕES ESPECÍFICAS: dizem qual será o estado de ânimo do actor quando tiver que falar. (v.g., nervoso)


Diálogo – intercâmbio discursivo entre as personagens
Solilóquio – falar sozinho (sentido etimológico)
Monólogo interior – fluxo de consciência
Coro – conjunto vocal que se exprime pelo canto ou pela declamação
Narração – relato dos acontecimentos ou feitos



Dez diálogos a evitar:
1- diálogo literário;
2- diálogo recortado (constituído por frases curtas; teatral; ultra-realista);
3- diálogo repetido (repete várias vezes a mesma coisa, de maneira diferente);
4- diálogo longo (a usar quando absolutamente necessário);
5- diálogo clónico ou nulo (todas as personagens falam da mesma maneira; as diferenças de personalidade foram abolidas);
6- escolha léxica errada (é preciso ter em conta que cada classe social e grupo cultural emprega uma terminologia específica, utiliza determinadas palavras em vez de outras);
7- diálogo discursivo (mistura dos diálogos literário, longo e repetido);
8- diálogo inconsciente (caracteriza-se pela falta de conteúdo dramático – a personagem não tem nenhum sentimento para transmitir, nenhuma acção para comentar);
9- diálogo introspectivo (não é monólogo, mas falar sozinho; tem origem nos antigos "apartes" do teatro);
10- diálogo impossível ou artificial (não parece real, não tem credibilidade nem razão de existir; é formalmente correcto, mas falta-lhe alguma coisa – falta de motivação e de intencionalidade por parte da personagem).


Anotações a ter em conta
.continuidade no diálogo: é preciso respeitar os estados de ânimo das personagens, a continuidade dos estados das personagens;
.aspecto visual: é melhor, podendo, passar uma informação visualmente do que verbalmente; a expressão ou reacção silenciosa de uma personagem pode ser mais significativa do que uma interferência verbal;
.quem é quem: educação e classe social da personagem; as informações sobre uma personagem têm de ser proporcionadas subtilmente, por meio do diálogo e dentro do contexto em que decorre a acção;
.clímax: no diálogo de qualquer cena existe um momento de maior intensidade dramática – ponto culminante, que deve ser destacado, tanto quanto possível;
.tiques e clichês: todas as personagens têm o seu próprio modo de falar, a tendência para repetir uma série de palavras (idolecto);
.sotaque: deve seleccionar-se as palavras típicas mais representativas;
.ganchos do diálogo: grandes momentos verbais da personagem, passagens emocionantes que podem servir de atracção para o final de uma cena;
.subtexto: o que está implícito no texto, o que se pode ler nas entrelinhas; pode manifestar-se por gestos, atitudes e posturas das personagens, ou dar-se a entender na fala;
.telegrafar: evitar dar informações de maneira directa e explicativa; deve diluir-se as informações no decurso do diálogo;
.pontuar ou não pontuar: pontuar o diálogo (interjeições, exclamações, interrogações, pontos e vírgulas, indicações, legendas) é uma forma de dar ritmo à linguagem, de dar uma pauta de interpretação ao actor e de dramatizar a escrita;
.limitações das crianças: as crianças, num guião, só devem falar o estritamente necessário, ou seja, pouco;
.telefone: o diálogo telefónico soa sempre artificial; deve procurar-se evitar tais conversações; a maioria das vezes, o telefone é utilizado para informar ou reorientar o público, nunca no clímax de uma história, por exemplo, porque é sempre melhor uma confrontação cara a cara das personagens; se o uso do telefone for imprescindível, deve ser breve e pode utilizar-se um split-screen.


FORMA
CAPA:
Título do filme
Nome do autor
Número de cenas
Duração do espectáculo
Número de páginas
Tipo de trabalho (adaptação, argumento, primeiro guião)
Género (drama, comédia, terror, policial)

FORMATO DO SCRIPT POR CENAS
Do lado esquerdo:
- número de cena;
- identificação da cena (exterior ou interior, lugar, dia ou noite);
- descrição sumária da acção (conduta das personagens, aparências);
- indicações do movimento da câmara (planos) – vd.;
- indicação do ambiente geral da cena;
- indicação do tema musical, sempre que for preciso;
- indicação dos ruídos que não se deduzam directamente da imagem;
- última anotação, para indicar como pretendemos abrir e fechar a cena (encadeamento, corte).



Do lado direito:
- diálogo;
- nome das personagens;
- atitudes de interpretação.

Ex.:

CENA 22 INTERIOR.QUARTO DE DUARTE.DIA

Duarte acorda; estava a sonhar. Abre os olhos. Ema está no meio do quarto, de pé, com uma bandeja nas mãos.

PLANO GERAL
DUARTE: Ema?
EMA: Trouxe-te o pequeno-almoço.
Ema aproxima-se e pousa a bandeja em cima da cama.
DUARTE: Formidável!
CLOSE da bandeja e do típico pequeno-almoço.
EMA: Bom dia, meu amor!
CORTE


TAKE: tempo em que se filma sem interrupções


Quando movemos a câmara, dizemos que está num ângulo – em ângulo para a direita, para a esquerda, para cima, para baixo.

Deslocação da câmara: progressiva (aproxima-se)
regressiva (afasta-se)
repetitiva (vai e vem, repetidamente)

A única coisa que o guionista necessita saber é que a câmara se move a partir de qualquer ângulo.

PLANOS
Os planos podem ser fixos ou estar em movimento.
Principais planos fixos:
1. primeiro plano (close up) – plano próximo do objecto, põe em evidência um detalhe;
2. plano médio (americano) – vemos uma pessoa da cintura para cima;
3. plano geral (long shot ou full shot)- o plano geral dá mais ênfase ao ambiente, enquanto que o plano de conjunto é descritivo de uma cena; em ambos os casos, abarca quer todas as personagens, quer o cenário completo; serve de pausa ou de pontuação da imagem.
Alguns planos em movimento (moving shots):
1. dolly shot – qualquer deslocação da câmara que seja basicamente horizontal (travelling); aproximação ou afastamento da objectiva (de cima para baixo ou perpendicular ao objecto):
a) dolly in – a câmara aproxima-se bastante do objecto;
b) dolly out – a câmara afasta-se;
c) dolly back – a câmara retrocede, deixa a cena e desaparece.
2. ponto de vista – a câmara situa-se ao nível dos olhos da personagem, temos a sensação de estar a olhar através dela (ponto de vista subjectivo);
3. travelling shot – a câmara acompanha o movimento da personagem, ou de alguma coisa que se mexa;
4. panorâmica (pan) – a câmara move-se da direita para a esquerda, ou de cima para baixo sobre o seu eixo, e dá uma visão geral do ambiente; costuma diferenciar-se panorâmica horizontal (panning) de panorâmica vertical (tilting);
5. process shot (transparência) – engenho técnico graças ao qual se projecta uma cena pré-filmada por trás das personagens;
6. ecrã partido ou múltiplo – o ecrã é dividido em partes;
7. zoom;
8. desfocagem;
9. halo desfocado – a câmara desfoca tudo o que rodeia o objecto, com o fim de o pôr em relevo.

AS INDICAÇÕES DE PLANOS SÓ SERÃO FEITAS SE ISSO FOR ACHADO IMPRESCINDÍVEL


Os efeitos ópticos servem para pontuar a acção, para abrir ou fechar uma cena. São eles:
- corte
- fade in
- fade out
- encadeamento
- encadeamento com desfocagem
- freezing
- câmara lenta (slow motion)
- cortina
- remoinho
- câmara rápida
- chicote

Hugo Rosa

OBRIGATÓRIO! 

De 4 a 21 de Junho, pelas 21h30, no teatro de bolso do TEUC - em Coimbra, pode e deve assistir à peça CALÍGULA de Albert Camus.

reservas: 239 827 268

Porquê?

- o TEUC é o mais antigo grupo de Teatro Universitário da Europa
- celebra o seu 65º aniversário (é Comendador da Ordem de Instrução Pública e Membro Honorário da Ordem do Infante Dom Henrique)
- pela qualidade do texto
- pela encenação, a cargo de Tiago Rodrigues: actor no prestigiado grupo franco-belga STAM; fundador do grupo SUB-URBE, que encenou uma peça sobre o movimento zapatista e foi representá-la em Chiapas; e editor do programa de culto ZAPPING (RTP2).

DOR DE COTOVELO 

Hoje andava eu às voltas pela Feira do Livro quando, junto a um alfarrabista que acabava de celebrar o 180º aniversário, vejo aquilo que se pode chamar de Michelle Pfeiffer enxertada de Pamela Anderson. Ou seja, uma miúda espantosa mas com o seu quê de suburbano. Bom, seja como for, quem diria que não a Pamela Anderson mesmo sem enxerto e a cheirar a enxofre? O que interessa é que este "tesão" folheava uns livritos olimpicamente ignorando as traças que despertavam da sua hibernação até que, horror!, viu a sua cintura ser ladeada por um matagão de boné dos Celtic, tatuagem de um dragão no pescoço e bafo a um vinho proibido pelas normas comunitárias. Tive esperança que lhe desse com o Auden na cabeça - sim, era isso que ela estava a folhear! - mas não. Beijou o dito cujo e eu agradeci a Nossa Senhora não ter ainda almoçado. Não lhe cheguei a ouvir a voz mas acenou afirmativamente ao alerta do indivíduo quando disse: "Temos d'ir p'rá Brandoa". Inspirado por tão traumático evento e pela sonoridade da terra, resolvi imaginar que poema lhe escreveria o... aaargh!... namorado. Verde de inveja, escrevi:

Ai filha és tão boa
boa como uma meloa
uma meloa de Goa
se lá ela for boa

Mas não tão boa como tu
que me deixas à toa

Devias mas era ‘tar pintada em Foz Côa
minha broa
anda comigo passear de canoa.

LFB

"MANIFESTO" 

NOTA: este texto foi escrito a duas mãos, quando eu e o Hugo Rosa, amigo/irmão/camarada/palhaço tínhamos 17 anos e, um belo dia, decidimos passar ao papel a nossa utopia de, quando fossemos grandes, ser uma espécie de Sam Shepard: actor, argumentista, estiloso. E publico-o para ver se convenço o Hugo - que deu uma de Rimbaud e deixou de escrever há anos - a juntar-se ao DESEJO CASAR.
LFB



Não encarem o seguinte texto como uma lição de moral.
Não encarem o seguinte texto como uma lição de moral.
Não leiam somente o princípio e o fim.
Não leiam somente o princípio e o fim.
Não concluam nada sem ter nada na cabeça.
Não concluam nada sem ter nada na cabeça.
Não sejam estúpidos.
Não sejam estúpidos.


Ouçam. Gritem bem alto. Tenham e não tenham mensagens. Não aborreçam quem não merece. Leiam. Matem o peixe de estimação que nada passivamente no aquário. Mas não sejam passivos como ele. Critiquem o que lerem. Criticar quer dizer pensar e executar.
Mas poupem-nos do cúmulo da estupidez.
Agrada-nos muito rir. Ter humor. Representar. Brincar de Deus. Pisar palcos. Ouvir aplausos. Ser irreverentes. Bater palmas. Matar moscas que zunem no ar e os assassinos das ideias. Salvo seja.
Detestamos o nazismo, a censura, a prepotência, a falta de gosto e Jirinovski.
Dantes escrevíamos à mão. Agora usamos o computador.
Andamos de bicicleta e caímos no chão.
Somos actores. E somos homens. E mulheres. E alguns são anjos.
Lemos.
Choramos. Usamos calções. Gostamos de água salgada. Apreciamos os boatos sobre nós. Inventamos mais.
Escrevemos.
Daqui a poucos anos seremos o futuro. E somos assustadores.
É politicamente correcto afirmar EU SOU. Mas estamo-nos nas tintas. Somos actores.
Fascinam-nos heróis como Zeca Afonso, Super-Homem. Tudo o que oscila entre o
- infinito e o + infinito e brilha mais do que ele.
Ainda não vimos a peça das nossas vidas.
Mas vamos ver.
Abolimos a SIDA, as drogas e quem se nos opõe. Tentamos impressionar.
A nós próprios. Fazemos nascer hinos.
Na altura em que lê estas palavras é possível que estejamos a ensaiar a peça das nossas vidas.

Paciência.
Uma coisa é certa.
Fazemos história.
Todos fazemos história, só não temos quem nos cite.

Temos paciência, CD’s, rasgos de talento, revistas e sede.
E sono. Muito sono.
Fim.
Acordamos sempre.
Até amanhã.

Hugo Rosa
Luís Borges


PENSAMENTO DO DIA 


"Mais vale um pássaro na mão do que um espeto de pau".

CITAÇÃO DO DIA 

"O quê?!"

Beethoven

AS ASAS MORTAS - um conto 

este conto foi escrito pelo meu irmão. Ganhou um prémio literário cujo nome não recordo (desculpa) e estou a editá-lo para ver se o AB se decide a escrever quanto antes para o DESEJO CASAR.
LFB


À medida que o sol nascia ao lado de um outro sol, erguia-me com o peso de séculos sobre mim e os pés cediam a toda a rouquidão do meu espasmo controlado. Não era capaz de dizer qual dos dois sóis era o real, ou o primeiro, e a terra tinha um cheiro, um cheiro antigo, vetusto, de muitas manhãs diferentes... Olhei a pele e já não sabia dizer bem se era, realmente, eu quem me vestia a mim mesmo, se era um bocado de carne, exposta, num talho. Estavam cruzes em minha volta e como que ecos viajavam de sol a sol. Noutros pontos do céu que clareava, umas pequenas explosões ocorriam, periodicamente, e quase jurava que era alguém que nascia, mas talvez fosse alguém que morresse.
Nunca o futuro me pareceu tão futuro!
Levantei-me e recolhi as armas a meus pés, peguei nos livros espalhados pelo chão e atravessei o cemitério dos corpos, infindavelmente.
Duas, três, quatro noites terão passado, mas não passaram. Após muitos quilómetros, surgiu-me mais um sol no horizonte do meu olhar difícil, e depois outro e outro e outro e outro... Aqui já não há noite. Há sempre um sol que vive.
A carne fede. Sinto que já morri umas quantas vezes com o cheiro. Ontem, ou um dia destes, talvez hoje, ainda, abracei-me a um espírito que mendigava numa duna. Dei-lhe aquilo que tinha - o calor do sangue que talvez ainda me corra e acabe, no chão, miseravelmente.
Há pouco encontrei uma casa e entrei, mesmo antes de me ter apercebido que, no chão, já não havia qualquer sombra das minhas asas.
Nas paredes, há os medos e os desejos, porque não há luz e luz não havendo já não sei como sou ou como pareço ser. Já não sinto as memórias em mim, pelo que qualquer brisa me trespassa e me sangra, ainda que esse sangue não se veja. Um grupo de homens de fatos vermelhos entra, agora, na casa, a única casa neste horizonte, e me rodeia, sem que me esteja a cercar. Olham-me, fixamente, por horas, antes que algum deles solte qualquer palavra ou sequer um som. E eu sento-me, no chão, verifico a ausência de munições nas armas, peço-lhes um lápis, uma caneta, sem obter resposta, e reduzo-me à inutilidade de ler os livros que tenho. Nem tento dormir e só algumas vezes me lembro de que o posso fazer; não sinto necessidade ou vontade.
Como as paredes não têm janelas, de vez em quando vou à porta, vejo feixes de luz brotar do chão e, poucos minutos depois, quando se apagam, há mais corpos deitados ou vagueando nas distâncias imprecisas. Já ninguém sente o calor. Cada vez menos tentamos o que quer que seja. Divertem-me apenas as cores dos céus e os seus reflexos na íris dos olhares nítidos e obscuros dos habitantes deste prédio - não sei se fenecem, se se despem, somente -. Às vezes, tudo me parece inútil - é quando estou lúcido -; outras vezes, embriagado pelo rubicundo dos fatos (notei, há pouco, que há outros círculos desta gente, espalhados pela casa, calculo que em volta de outros que, como eu, não sabem da ausência nas suas costas...), aceito só a expectativa e espero como alguém esperaria por alguém que devesse chegar e por quem valesse a pena esperar.
As nossas ânsias são um satélite que nos gravita. Não entendo como os mortos se fazem vivos e os vivos são mortos. Desconheço a linha que os une e o laço que os liga a mim e aos próprios mortos todos de mim a todos eles.
É espantoso, devo dizer, todo o espectáculo de luz que nos serve de atmosfera. Só dentro desta casa está, completamente, escuro - à parte os fatos vermelhos que fazem anéis da mesma cor e as páginas brancas dos livros que carrego, iluminadas pelos meus olhos -.
Tudo prossegue e fica igual.
Ninguém chega. Alguém deve chegar?

Passa o tempo, julgo. O meu desespero é como se aumentasse.
Hoje (a minha barba não cresceu. Não tenho barba.), o cenário já é o de um incêndio enorme que me cerca. Cerca tudo. Cerca todos. Invade-nos. Engole-nos e, todavia, sobrevivemos dentro da sua garganta. Somos tragados; pertencemos, assim, a outro corpo que não só o nosso já; um corpo muito, muito, muito maior, disforme e incerto, pelo que aterroriza e por não vermos o seu rosto e por não saber, por não poder saber, se somos os seus dentes, o seu estômago ou os tecidos da sua pele efervescente... E não estar habituado a alguém (Alguém) maior do que nós?...
Aqueles que repousam, sem o conseguir realmente, desvanecem-se nas golfadas de fogo. A inquietação das suas almas em conflito dispende uma tal energia que faz derreter a matéria envolvente. Já não tenho armas ou livros; jazem num altar de labaredas roxas, diante dos meus olhos, sem se consumir. Ao lado dele, há outros, com outras armas e outros livros. Uma boca maior do que o Universo ri e estrangula-nos até à queda, quase até ao fim do precipício, na pré-ciência sentida do pecado infiltrado, fundido, carne e sangue eternos, carcereiros, coveiros, Carontes.
Compreendo a imutabilidade a que me tenho de votar. Procuro não fazer sequer muito esforço no uso do pensamento e reduzo-me, por agora, ao tesouro da memória. Lembro-me dos trapézios esfrangalhados das infâncias, líderes em púlpitos, sombras chinesas e chapéus de papelão, cavalos às riscas e muros pintados com rostos e mensagens que procuravam, em vão, ser novas. Os caixotes de lixo metálicos nos becos e nas vielas, os vultos disfarçados nelas, um casal agarrado beijando-se numa mesa pequena num canto de um bar, o gosto de uma bebida quente, de manhã. O paço de um palácio. O imaginar as estrelas escondidas nas noites de nevoeiro. O vapor das bocas, esculpir na espuma, o prazer das mãos na areia, noites em branco escrevendo, sorrisos de aniversário, gente bonita vestindo-se para uma festa. O doce do sal. A parte negra de um floco de neve. Dormir depois de dormir, olhares consecutivos, fortalecer-se no riso, falar horas com os amigos. O deserto. Encontrar o Mundo depois de o atravessar. Os índios dos cais de embarque. A nocturna celeuma dos bichos sentinelas.
A fogueira aumenta, irremediavelmente, a Fogueira.
Que nome se dá a um anjo morto?
Sempre me encantaram os números infinitos. Acho piada às fórmulas matemáticas que podemos escrever e ter, indefinidamente, na nossa cabeça, mesmo não compreendendo as suas razões. Gosto de círculos pintados nos azulejos. De percorrer com os olhos a sua curva interminável e naufragar no recomeço eterno.
O Espaço deixou de andar e, logo, o Tempo deixou de existir.
Nunca vi a cor dos meus próprios olhos; poucos poetas souberam imaginar em volta dela, ou então, é culpa das musas que nunca dela falaram.
Um dia, o Mundo desfez-se num dilúvio; hoje, é a vez da vitória do fogo, depois de milénios de domínio da terra.
Algumas imagens, a pouco e pouco, parecem começar a surgir das entranhas do fogo, estátuas esculpidas pela própria vontade de o serem; gárgulas se vislumbram como pontas de cigarros acesos, no chão deitados; aves de chamas o céu habitam, ao invés de estrelas. Colunas vermelhas avançam e recuam, um tecto parece descer sobre as nossas cabeças, demónios dançam, incendiando o salão e vampiros fazem o mar e suas ondas e seus redemoinhos.
Aquilo que, em terra, o grande fogo não consome, este terrífico mar suga e engole. Os ossos, as unhas, os cabelos, os pontos negros, as pestanas, as guelras, as espinhas, os nervos, as veias, as vértebras, os dentes, os sabres, as presas, as garras, os anéis, os implantes.
Os ramos já secos das árvores gigantescas.
As pedras pintadas de cal de algumas muralhas.
As gengivas.
As carapaças dos caracóis.
Estas pequenas rugas dos meus dedos.
A casa, a única casa já não se vê. Todos os sóis se fundiram num só, digo-o por já não ver fronteiras na abóbada celeste, mas até parece possível que esses sóis tenham descido todos sobre nós. O sangue já é visível, para nosso terror.
Agora, contemplo no cosmo o desenho das minhas asas, mas distantes, irrecuperáveis, numa espécie de pintura de inimagináveis dimensões, oferecida não se sabe por quem ou em que recanto ébano ou paradisíaco pintado, se concebido como todos nós ou não, em violência de pecado, um incesto de alma, aberração contra a lei da razão ou contra-natura. Asas e asas pintadas, retratadas, sobrepostas, confundidas, com o nome de todas as religiões e seitas e crenças subscritas. Os círculos de homens de rubicundo vestido desfazem-se e posso ver os meus parceiros, de igual modo contemplando esta atmosfera e identificando com a direcção dos olhares a reprodução dos seus pares de asas. Apalpavam as costas, como que conferindo a lacuna, certificando-se de que as formas dos sulcos poderiam ser servidas pelos contornes do desenho. Súbito, tudo se desfaz sobre as nossas cabeças, em milhões e milhões de pequenos pedaços, fragmentos de luz, chovendo, torrencialmente, espécie de tempestade de pesadelo, efemeridade e irrecuperabilidade de todas as coisas, sobretudo, das mais queridas. O nosso espanto não é maior do que a certeza que tínhamos de que isto mesmo sucederia, mais momento, menos momento. Compreendemos toda esta imagem como o fim de um reinado, a negação final do nosso direito a voar, aos céus, a contemplar a terra de uma distância assim tão razoavelmente segura para que as dúvidas nos mantivessem vivos sobre o pó das estradas.
Alguém cresceu. Alguém entrou.
Alguém é, agora, maior do que eu.
Serei, dentro em breve, réu de um julgamento, no qual, toda a existência, pensei que seria juiz. Ou sou já condenado ao calabouço, sem direito ao verbo nem tempo para o pensar.
Devo dizer que as masmorras do Mundo são húmidas como o fim do Mundo e negras como a grande noite do Mundo.
Apanhem os últimos voos para fora do planeta das trevas. Escondam-se, enrolem-se bem debaixo dos cobertores. Acendam velas em todas as esquinas. Toquem música nos funerais. São frases que solto, correndo pelas devastadas planícies de inumeráveis cadáveres, já quase totalmente desprovidos de algo que confirme a sua existência. A minha alma subsiste como uma milenar raiz presa, adjacente à terra, interdependente com a razão humana e o universo concreto e concretizado. Um último bulício leve acalma os nervos em franja dos loucos que me acompanham para que, logo depois, uma maré de asas curvas e enrugadas, envelhecidas, de biliões de vampiros nos varra, directamente, para as mais fundas covas do intelecto maligno, a infinitésima estação da super-mente, o derradeiro lugarejo de um país em chamas.
Seremos sepultados num jardim de pântanos sobre pântanos, sem cruzes, sem campas, sem pedras tumulares, sem inscrições, ou orações, ou flores, ou homenagens, ou qualquer símbolo que ligue algo a alguma coisa, sem nada que lembre nada, sem alianças, nós, conotações, memórias ou edifícios de alma - algo vai começar, algo tem de começar. Tudo vem do silêncio, do nada. Nada pode haver que traga um passado. O Universo reencarnado não pode possuir nenhuma cicatriz no seu corpo que o faça, possivelmente, lembrar-se de que, um dia, se vestia de outra forma, tinha outros amigos, outro emprego e visitava outras pessoas. Ao Demónio não convém que alguém tenha passado, que alguém cresça, que alguém tenha a força da recordação sobre si. Ao novo príncipe não convém que haja retratos do antigo rei nas paredes do palácio.
Os meus olhos fenecem hoje, sem julgamento, nem funeral, nem cerimónia, nem procissão. Esse Universo contorce-se na cama e aconchega os cobertores, julgando que é de frio que se trata. Mas as ausências gelam mais que as portas entreabertas ou mesmo as completamente escancaradas. Num quarto vazio, ouve-se melhor um grito de dor do que num super-populado. Já não há mais passos nos meus ouvidos, nem bactérias nos caules das plantas nem caules nem plantas. Já não há pequenas melodias intercalando as acções.
O fogo. O Fogo assumiu tudo o que estes olhos puderam ver e inventar. Ruiu o quadro pintado das minhas asas, bem como os dos deuses dos outros templos. As nossas armas e as linguagens que falámos consumiram-se, enfim, nesses simulados altares de labaredas. Contemplo o Destino em mim, como sempre o fiz; há nele a vertigem de uma falésia perpétua.
Onde se enterra um pássaro grande, quando ele morre?
Os pássaros não são da terra, mas pertencem ao céu.
É possível guardar alguém no céu?
Pode o céu ser um lugar onde se fique eternamente?
Entro, lentamente, num estado de sonolência. Sinto o meu raciocínio movimentar-se mais custosamente nos soalhos escorregadios do palácio da Ideia. Sinto-me cansado. Sinto-me velho, ou melhor, envelhecido, estranhamente, mas de um modo que compreendo, por completo, desde o primeiro instante desta revolução. Ainda levo comigo os álbuns de fotografias da minha mente e, nas costas, tenho uma ferida que jamais haverá de sarar.


- Dia 1, Mês 1, Ano 1 -

Deus morreu. O seu enorme corpo foi, hoje, encontrado já em avançado estado de decomposição na banheira de um quarto de hotel em Praga. Na aparelhagem sonora, passava, repetidamente, o tema "Losing My Religion", dos norte-americanos R.E.M. e, no chão, foi encontrada uma aliança de ouro, já oxidada por completo. Mais nada existia em todo o quarto: roupas, móveis, cores, cheiros, documentos... O porteiro do estabelecimento identificou a vítima aos agentes policiais.
Entretanto, mais sete guerras rebentaram em sete partes distintas do globo; seiscentas e sessenta e seis pessoas foram vitimadas numa colisão frontal entre dois comboios e três florestas arderam por completo durante os escassos minutos de um eclipse solar total.
Boa-noite. Estas foram as notícias do primeiro dia do novo mundo. Talvez nos tornemos a ver amanhã.

Alexandre Borges

Vou despedir-me dela antes de viajar. 

Só comecei a viajar a sério desde há 3 anos para cá. Por um daqueles acasos da vida, criei um peculiar padrão: na véspera de cada partida ganhei o hábito de ir ao pequeno Irish Pub do Cais do Sodré beber um copo. Na prática, comecei a ir lá - antes de cada viagem - para me despedir de um dos meus amores. Uma empregada do Irish que eu amo. Aqui vai a carta de amor ridícula: toda a nossa "relação" é feita de frases curtas e olhares ternos. Eu peço-lhe guinesses, ela sorri-me, traz-me a conta e eu sorrio-lhe. Às vezes, elogio o que tem vestido, ela cora e pergunta o que estou a escrever. Esses momentos são baseados no desconhecido, no que não sabemos um do outro, e é assim que estamos bem. É um dos poucos minutos puros da minha vida e quero conservá-lo tal como está, simples e belo. Hoje, ao fim de muito tempo, voltei ao bar. Ela não estava lá. A minha namorada não percebe porque fiquei triste esta noite.

Mas amanhã não vou partir para lado algum.

Luís Filipe Borges

UM TERCEIRENSE EM SÃO MIGUEL - CRÓNICA DA BOAVAIELA 

Esta crónica foi escrita há quatro anos, quando fui a São Miguel pela primeira vez. Quis publicá-la recentemente na revista :ILHAS mas deixei passar o prazo. A ideia era agradecer, humildemente, a forma como fui recebido pelos meus grandes amigos e anfitriões Mónica e Nuno Costa Santos. Aqui fica o beijo e o abraço.


A história de um jovem que se descobriu turista na sua própria terra. Uma crónica de água quente, água férrea, água fresca, água salgada e amizade. Paisagens e pessoas, e uma análise pseudo-sociológica e armada ao pingarelho do "cronista".

I parte


Cheguei a Ponta Delgada à 1h e 30m, no Golfinho Azul. Ofereceu-se-me um vistoso espectáculo da marginal da cidade, espraiada, longa, iluminada, harmoniosa.
Fui recebido pelos anfitriões micaelenses e pelos amigos continentais que já se encontravam há dois dias na mais bonita ilha dos meus açores, meus amores, férias que nunca se esquecem.
Tenho 21 anos e é a primeira vez que vou a São Miguel. Sim, sou da Terceira, mas é a primeira vez.
Paguei 13000$00 – com cartão jovem – para ir e voltar, e descobri que o barco faz uma travessia de tempos a tempos, ao invés de o fazer dia sim dia não como em qualquer outro ponto civilizado do mundo. Conclusão: estamos isolados na nossa própria terra. Nem me vou dar ao trabalho de desancar o escândalo que são as tarifas aéreas entre ilhas, basta dar o exemplo tradicional, à escala do país: é que é mais barato ir a Londres, por exemplo do que até aos Açores. Serão resquícios da Antiga Aliança?!
Como açoriano compreendi que não passo de uma anedota. De repente, ainda me faltam conhecer sete ilhas. Como é que me posso chamar açoriano? Sinto-me mais um milhafre, nome bem menos poético e digno, que faz jus ao meu estado de espírito empobrecido. Sou do Arquipélago dos Milhafres, onde as gaivotas vão beijar a terra ...quando o rei faz anos. 13 contos?! 13 contos com desconto, meus caros?!

Ponto dois, para iniciar uma análise sociológica:
a) os micaelenses são mais orgulhosos das suas coisas;
Melo Abreu, Loreto e afins, Coroa Real e Meia Coroa, Açoriano Oriental, Queijos e lacticínios, Além-Mar, as soberbas cigarrilhas Ilhéus, o chá Gorreana e os bolos lêvedos, a nossa carne, enfim e etc!
Em São Miguel cultivam-se as coisas boas e açorianas com um orgulho e gosto que não encontro na Terceira.
b) os micaelenses sabem reconhecer que Angra do Heroísmo é a mais bonita cidade, e o edifício Solmar – esse ex-libris dos tempos recentes – não passa de um feio mamarracho (mas tem lá dentro a excelente e aprazível Livraria Solmar).
c) Em Ponta Delgada existe um sítio que se chama Tabacaria Açoreana. Híbrido de snack-bar com papelaria, livraria e soberbo poiso de tertúlias. De Mota Amaral aos craques do Santa, todos por lá passam. Na Terceira, não há nada assim, o que está mal. A Tabacaria Açoreana é o sítio ideal para passar as tardes do fim-de-semana, a ler os jornais todos, fumando uma Meia-Coroa – acompanhada, talvez, de Maracujá do Ezequiel – e sempre preparado para interromper o solitário ócio para uma breve conversa com os amigos, os que vão connosco e os que por lá passarem.
d) Ouvi, durante os meus dias micaelenses, que os terceirenses eram mais cultos. Ouvi isto da boca de um homem que coloca jazz durante as refeições e discute ética e actualidades e literatura, antes de relaxar à tarde com a voz de Cesária Évora. Se ele tiver razão, então o petit pays açoriano está bem e recomenda-se!
e) Na Ribeira Grande, pus o meu pézinho na Cervejaria Cascata. Onde os petiscos, a qualidade dos fininhos, e a boa-disposição do Manuel e do Fernando me fizeram compreender melhor os motivos da alegria jovial dos micaelenses.
f) O BAIRRISMO é uma coisa que os terceirenses e micaelenses inventaram para brincar e para se defenderem uns aos outros quando terceiros nos provocam.
g) Na Terceira, entre os jovens, nota-se uma certa estratificação "social": os betinhos ou queques, os parolos ou saloios, os marginais, & the regular people… Em São Miguel, os grupos de amigos são maiores, as pessoas são mais, e conhecem-se melhor, também.
h) Em São Miguel as distâncias, muito maiores, são percorridas mais facilmente. Há um enorme amor pela ilha que extermina a preguiça de caminhar. Ela é calcorreada metro a metro, passo a passo. As pessoas são mais unidas e fazem mais programas. Na Terceira, fazer os vinte e tal quilómetros que separam Angra da Praia da Vitória é, para o terceirense, uma tarefa penosa.
Os micaelenses são mais práticos.

II PARTE 

Falemos de bairrismo… Quando os meus amigos do continente chegaram à Terceira, foram recebidos entusiasticamente pela minha mãe que, sabendo de antemão que São Miguel seria a sua próxima passagem, tratou de explicar – sucintamente – as razões de o Governo estar na ilha maior e não na terceira; os motivos pelo qual os lacticínios terceirenses são melhores; e, até, as obscuras razões pelas quais o Santa Clara é a equipa açoriana na 1ªLiga e não o Lusitânia!
Tenho que vos contar um segredo: a minha mãe era professora do ensino básico em São Miguel quando ficou grávida deste vosso humilde escriba e, três semanas antes da data prevista para o meu nascimento, viajou para a Terceira só para que eu nascesse lá e não na ilha de Antero!… Ah!, mãe há só uma, não há dúvida...
De qualquer forma, e ao visitar as Furnas – o magnífico local em que fui concebido -, senti-me ainda mais orgulhoso da minha vigorosa costela micaelense. É claro que o bairrismo existe, mas só ajuda a tornarmo-nos competitivos e curiosos ao contrário, por exemplo, dos madeirenses (mais fechados em si próprios).
Mas que impressões guardou ainda este terceirense?
A noite em São Miguel é muito mais variada e diversificada; há mais hipers; e o aeroporto é estranhamente muito melhor que o das Lajes; notam-se mais assimetrias sociais do que na ilha de Nosso Senhor Jesus Cristo e há menos monumentos e locais históricos para visitar; viajar em São Miguel é como caminhar infinitamente num jardim em que tudo foi cuidadosamente disposto para encantar (esqueçam-se os postais e os filmes, a ilha merece toda a atenção das nossas pupilas e provavelmente até se tornará a menina dos nossos olhos - que trocadalho!); as estradas são melhores mas circular no interior da cidade de Ponta Delgada é tarefa complicada; o epíteto ILHA VERDE não é vão; a apresentação das freguesias é mais cuidada do que na Terceira, o que é constitui bom sinal do carácter orgulhoso dos seus habitantes; não há touradas, o que é uma grande vantagem (note-se que acabo de cometer, face aos terceirenses, um autêntico crime de lesa-pátria); as pessoas são tão hospitaleiras como na Terceira; há uma festa em cada esquina, como em qualquer ilha do arquipélago, o que contraria a ideia cinzenta e triste que muitos continentais têm dos açorianos; o Pauleta nasceu em São Miguel e não na Terceira; e há muito mais praias – podem-se queimar os pés na praia da Ribeira Quente porque há lá caldeiras (na Terceira só furnas de enxofre) - e há mais lagoas e jardins.
Tive o privilégio de passar um dia numa das poucas casas que existem na Lagoa das Furnas, com amigos, comendo um panelão de cozido que resistiu quase uma semana. Tenho a certeza que estive, seguramente, num dos mais bonitos locais do mundo. Acabámos a noite na mais completa escuridão, de pança aviada e voz afinada a cantar. Noutro dia, revivemos a infância na Praia do Pópulo. Atacados de um súbito síndrome de Rua Sésamo, desatámos a atirar areia uns contra os outros. Em plena água. Com banhistas. Um americano de aproximadamente 2 por 2 metros e 200 kgs de peso, ao assistir à cena, exclamou com a mesma voz que eu teria se me torturassem os genitais: "What’s with this people?! They’re throwing ROCKS at each other!", segundos depois, perante a imagem de um punhado de areia com quase 2 kgs que se enamorou fulminantemente da sua cara, o mesmo americano gritou alto, agudo e fininho: "Holy shit!", e caiu redondo na água, em pleno início de tratamento facial.
Enfurecido por ter sido alvo de uma emboscada por parte dos meus amigos, comecei a retirar areia e a catapultá-la em todas as direcções, qual bateria anti-aérea fora de controle. Um inocente pai de família ainda disse: "Olhem que eu estou aqui!", mas também acabou como vítima. Antes que causasse mais incidentes internacionais ou que acabasse por arruinar o turismo açoriano (bem como a hospitalidade), saí da água e fui tomar notas para esta crónica – que já vai longa.
Vi o pôr-do-sol nos Mosteiros, comi ananás, vi a Lagoa do Fogo coberta de nevoeiro, as Sete Cidades, estive em todos os miradouros e ouvi histórias e palavras de pessoas que não podia deixar de conhecer.
Como não podia deixar de ser, tivemos o nosso dia de bruma. Os amigos continentais queixaram-se da humidade, nós cantámos canções regionais, os pais do anfitrião prepararam uma lauta refeição e ficámos uma tarde em casa, a ver a chuva pela janela e a pensar que as palavras saudade e nostalgia e ternura e poesia tem um sentido particularmente belo e simples quando o chão debaixo dos nossos pés é parente da lava.

Luís Filipe Borges

O AMOR NO MEU PAÍS 


Há um pequeno país
Separado do continente por um rio de vinho
Onde as mulheres amam os homens
Com as palavras dos grandes poetas

(que eram homens que amavam mulheres e outros homens)

neste país os presidentes de câmara cantam
e os assassinos são perdoados
pelas vítimas ressuscitadas

neste país pequeno país só há um amor
um lago uma vida uma refeição uma luta
uma mentira e uma verdade

um só norte, nenhum um sul, dois estes e um oeste

porque nada nele termina
e tudo nele começa

às casas falta-lhes o tecto ou a porta de
entrada ou alguns tijolos nas paredes

as pessoas reconhecem que são imperfeitas
incompletas e invisíveis
neste país

sabem que o amor dura pouco
e que aqueles que o experimentam
são abençoados, escolhidos e felizardos

neste país

nunca houve morte (apesar dos assassinos)
mas todos a esperam

enquanto amam cantam perdoam
e continuam – incansáveis – a construir
as suas estradas e casas que nunca estarão terminadas


esse país, se as juntar ambas,
é
as minhas mãos .
LFB

AS COISAS ASSOMBROSAS 

a ocupação do mundo pelas rosas.
Natália Correia


Olho com medo para todas as portas
Mas com coragem para as janelas

Sou do mar
Tenho fim mas não o encontro

Sou um rio porque rio
Amo o difícil
Os mortos meus contemporâneos
Os leitos e as correntes

Sou pai e sou a terra
Um velho invencível


Sei que continuarei a existir depois de morrer.
LFB

DEUS 


Em São Miguel
Uma igreja sem luz
Uma luta de amor
Um corsário ferido

Somam-se na tarde para se chamarem oração.

Entro no templo, séculos me interrogam
Depois o silêncio







Ao abandonar a igreja
Não sabia se eras a luz nem se continuaria,
Sequer, a acreditar em ti

Mas amar-te-ia para sempre.
LFB

A INTUIÇÃO DO TEMPO 


Durante a noite todo o meu cabelo
Embranqueceu
Da minha infância finalmente
Me esqueci
Ao sol um novo astro sucedeu
Aqui – onde os lírios já nascem mortos
Tu, infame, não recolheste as mãos
Para abrigar a chuva
E eu, como uma ilha,
Deixei-me violar por estrangeiros
Deixei-me ficar na enganadora
Tranquilidade dos meus vulcões extintos
A contar os meus cabelos brancos

Não aceito o mundo
Não aceito o tempo
Não aceito a ignorância

Morro todos os dias.
LFB

ESTRELA DE MEDO 

Atravessou o céu uma estrela de medo
No seu canto mudo revelou onde cairia

Faz as tuas malas, amor cadente
Despede-te dos teus amigos
Urgentemente vamos de mão dada
Com o terror encontrar o medo

A estrela disse que cairia
No meio de nós

Qual pai, filho e espírito santo

Matamo-nos uns aos outros
Para reaprender a rezar

Longe
Muito longe

daqui.
LFB

POEMATO 

a Mário Cesariny



Ela é uma gata
Que se tornou mulher
Mas
Vou transformá-la em gata novamente

Com um sol quadrado de giz.
LFB

TALVEZ POR SER TÃO TARDE 

A Celina, proprietária da recém-criada editora Tágide, bem tenta publicar o meu primeiro livro de poesia ainda este ano. A data apontada é agora Setembro, faz precisamente um ano sobre a primeira data que se idealizou... Sermos um "país de poetas" é, afinal, o mais banal e anacrónico dos chavões. Enfim, desde que concluí o livro escrevi apenas alguns poemas que partilho convosco neste blog. Talvez para receber opiniões por mail, talvez por serem os primeiros dias e as visitas tão escassas, talvez por não ter vergonha na cara, talvez por ser tão tarde.

Luís Filipe Borges

MOMENTO ALTO DE SEXTA-FEIRA, 13 

O meu momento alto do dia foi ver um casal estrangeiro tirar uma foto ao seu filho mulato sentado numa grande bola de mármore nas imediações do Teatro D.Maria II.
Atrás dele estava todo o Rossio e, à sua frente, um futuro brilhante.
A julgar pela forma como a mãe preta e o pai branco sorriam entre si e para ele, esse futuro estará sempre muito bem protegido.

Luís Filipe Borges

VERSOS NUMA PAREDE LÁ DE CASA 

sentia-me tão perto de ti
que tenho frio ao pé dos outros

PAUL ÉLUARD

NELLY FURTOU-ME 

Amo aquele que deseja o impossível.
Goethe



Ontem à noite sonhei com a Nelly Furtado. Não um sonho daqueles que poderia passar em descodificado nalgum recôndito canal da TVcabo, não. Foi um sonho como não tinha desde o meu affaire com Kim Basinger, por volta dos 15 anos. Um sonho terno, terno de absurdo: a Nelly – de quem gostaria sempre muito nem que fosse pela raiz açoriana – estava em Portugal para um concerto. Então, conhecíamo-nos graças a uma providencial entrevista que tinha de lhe fazer, e ela acabava por cancelar espectáculos e ficar duas semanas em Portugal, comigo. Foi o meu "Notting Hill" privado, suponho. Isto numa altura, completo o meu primeiro quarto de século, em que me pergunto com mais insistência do que nunca quais são os meus objectivos na vida.
A verdade é que só existimos no nosso passado - mesmo quando o queremos esquecer é lá que estamos. E, apesar do orgulho que tenho no meu, estou sempre deprimido, há é dias em que me esqueço disso. Porquê?
Discuto-o com amigos.
Concluímos que o problema deverá ser o seguinte: por muitos êxitos que se consigam, ainda existem, lá onde provavelmente acabam os arco-íris, os Nobel, os Pullitzer, os Óscares, e as mulheres aparentemente inacessíveis, já agora. E existem, no presente, os nossos sonhos desmedidos.
Ainda bem.

I’m like a bird, I wanna fly away, suponho que este é o permanente motivo da minha permanente insatisfação. Só é pena, Nelly, detestar esta canção. LUÍS FILIPE BORGES

REEXAME DA OBRA DE HERBERT QUAIN 

NOTA: o texto seguinte é de um eventual futuro membro do DESEJO CASAR, Luiz Duarte d'Almeida, bom amigo que não vejo há muito tempo em virtude de ter perdido o seu número num dos meus vários acidentes com os telemóveis. Trata-se de uma curiosa brincadeira/variação "borgiana". A sua edição é uma estranha forma de lhe pedir desculpa. LFB


O escritor Herbert Quain, cuja morte em 1946 passou intencionalmente não percebida nos meios literários, sofria dessa auto-comiseração que assola os que, na literatura como em outras artes, buscam ser visionários sem contudo alcançarem mais que magríssimas construções. Não se considerava genial: e justamente o seu tempo o compreendeu sem génio.
Experimental, sim. Procuraria brilhar pela novidade, que reenquadrasse o vulgar bom literário de qualquer conversa, de qualquer frase. Via a literatura não como qualidade da palavra mas como qualidade do sentido, da completude de um texto: não tomava por bom um livro que admitisse valorações, emoções distintas por distintos leitores; daí a busca da ciclicidade nos conteúdos do que escrevia.
O romance The god of the labyrinth, editado em 1933, não merece longa nota: é péssimo, e o facto de não ter sequer captado o interesse do público literário mais submundano e especializado só serviu para poupar o autor.
Ao contrário do que afirmou Borges (a sua análise sofre dessa outra cegueira que ataca as amizades longínquas) - mas só o vim a saber graças a um fortunoso acaso e à surpresa de uma chuva intensa que me levaram a encontrar o volume em causa numa livraria esconsa de Innsbruck que então me serviu de refúgio possível - existe um primeiro volume do romance April March, cujo subtítulo é Erratum. O carácter lúdico é todavia já o mesmo (e quase anteciparia que Agustina terá conhecido o livro): à exposição da decadente realidade de um indivíduo, excessivamente detalhada e com uma detenção de pormenores que revela a escassíssima maestria cirúrgica das palavras de que Quain era dotado, segue-se, à maneira de um «deverá ler-se» absolutamente típico de qualquer «errata», a alteração, revisionista, de pontos uns ou outros que reformulam o rumo da personagem. Frustra-se a ideia pela realização que lhe deu Quain, e julgo que a própria consciência dessa frustração terá vindo a dar génese à escrita dos Statements, obra na qual Quain aufere prazer em indiciar argumentos modelares a quem o lê, dolosamente os inviabilizando logo. É uma frustração fingida, contudo: dá forma artística, a final, à sua inépcia.
O embaixador Thiago Scarapelli, segundo me contou, conheceu Herbert Quain numa menoríssima recepção em Roscommon, e por motivos em tudo alheios às letras (Quain, ao contrário do que se julga, não morreu em Roscommon; apenas aí foi a sepultar, mas o facto é irrelevante); Augusto Garvila, por vezes, dava também notícia de uma conversa que, de passagem num colóquio, terá mantido com Quain, salvo erro (são-me relatos tardios, indirectos) em Salt Lake City, o que é suspeito e talvez pressagioso. Os Estudos de Garvila ecoam porventura o Erratum de Quain, e nisso estará um dos seus defeitos - não o menor.

Luiz Duarte d'Almeida


E VÃO 2 

Saudações, Bernardo! Desde o Porto, foste o segundo a entrar, com direito a "micaelense" e tudo. Agora, meus amigos, sei que o fim-de-semana é prolongado e está sol, mas toca a mexer! Mais membros precisam-se!

sexta-feira, junho 13, 2003

DE GINGER LYNN A GINGER ALE 

Tasca de Fino recorte na encosta nascente da ilha de S.Miguel, minha terra natóle.

-Olhe desculpe, é um GINGER ALE!
-Quié, qués does e mei?
-Não, não, é um GINGER ALE..
- Tu ma q qués é comé arei, tai iasnne!
-pode ser uma kima. Frasca que tá calô...

quinta-feira, junho 12, 2003

MANIFESTO EDITORIAL 

1. Abaixo o manifesto editorial.

2. DesejoCasar é um blog heterogéneo, composto por doze pessoas, cuja matriz
comum é, e será sempre, até que o desnorte nos separe, "ter alguma coisa de
jeito para dizer".

3. DesejoCasar não se rege por tendências ideológicas ou morais.

4. DesejoCasar divorcia-se de qualquer espécie de violência gratuita, seja ela
física, verbal ou um pontapé na boca.

5. DesejoCasar ironiza com a ideia da web como refúgio dos solitários.

6. DesejoCasar é uma homenagem ao sr. Carvalho. Este indigente não pedia
dinheiro, pedia Amor.

7. O Amor é, de facto, uma coisa linda.

8. O dinheiro pode não trazer felicidade, mas dá muita vontade de rir.

9. O sr. Carvalho não tinha vontade de rir.

10. Nós ainda não a perdemos.

Nota: subscrito pelo autor com os votos de "pronto, ’tá bem" dos restantes elementos.

DE GINGER LYNN A HOLDERLIN 

Nesta rubrica surgirão perfis ou apreciações de figuras que tenham merecido pertencer ao universo dos ícones pop, sem tabus ou critérios que não sejam o da iconoclastia. O que significa que, de Jenna Jameson a Carrilho, o elenco é grande.

A COLUNA DO PROFESSOR MAO 

O professor Mao é um conceituado politólogo que responderá às dúvidas existenciais de figuras públicas ou leitores que não sabem em que canto político se colocar: esquerda ou direita, e onde exactamente?

ENLARGE YOUR CHEF SILVA 

Culinária, costuma dizer o machão típico, "é coisa de rotos". Não. Esta rubrica, uma homenagem ao Chef Silva que há em cada um de nós, tentará demonstrar o contrário. Falaremos de receitas, de petiscos, de copos, de bares, de restaurantes, de tudo o que tiver a ver com os prazeres da gula.

POST-BLITZ 

Recuperar a memória e o espírito dos pregões do Blitz. Com humor, naturalmente. Será a coluna em que, quando assim lhe der na cabeça, o membro de DESEJO CASAR poderá insultar todos aqueles que considera repugnantes por gostarem de algo que despreza ou que o enoja.

RUI TEIXEIRA FAN CLUB 

Uma rubrica em que nos debruçaremos sobre tudo o que for questíuncula relacionada com o já célebre juiz. Quando a maré negra passar, esta rubrica será dedicada a elogios encomiásticos a pessoas ou coisas ou temas considerados "politicamente incorrectos".

NOTA 

Além da natural liberdade que cada um terá de escrever sobre o que quiser, quando lhe apetecer, o DESEJO CASAR incluirá rubricas recorrentes cuja definição sumária apresentamos.

PORQUÊ? 

Em poucas linhas:

a) entramos na blogosfera numa altura em que ela está em ebulição, e não pelos melhores motivos. Fazemo-lo com algum orgulho - é bom que coisas nasçam em tempo de crise.

b) juntamos neste projecto um grupo de pessoas que, dos Açores ao Porto com centro em Lisboa, não teriam outra oportunidade de integrar juntas um projecto.

c) discute-se muito a verdadeira relevância dos blogs. Será, seguramente, coisa para avaliar a médio, longo prazo. Mas comprometemo-nos a publicar diariamente porque:

1) acreditamos na separação entre o trigo e o joio;
2) acreditamos que os blogs são uma boa sede para jovens cronistas ou cronistas sem oportunidades na imprensa;
3) é aliciante fazer parte de um novo tipo de media;
4) agrada-nos a oportunidade de escrever, pelo simples prazer de fazê-lo, partilhar opiniões, informações, histórias.

Somos um grupo que inclui jornalistas, arquitectos, designers, juristas, argumentistas, filósofos, numa média de idades que vai dos 22 aos 39.

Luís Filipe Borges 

Nasceu a 5/8/77 em Angra do Heroísmo por isso o resto vai em "terceirense". É um rapaz mal amanhado com a natureza humana que gosta muito de escrevê, dormi, comê e bebê. Esbagaça-se de vez em quande a fazê de actô, umas vezes pago outras não. Tem um livre de poemas que 'tá poderes de deficil p'ra ser editade e sonha ser pai e realizá um filme daqueles grandes. Tirou o curse de Direite mas ainda não pediu o diploma. A única vez que esteve num tribunal foi come arguide mas acabou absolvide (a coisa era difamação e abuse de liberdade de imprensa). Orgulha-se de ter umas poesias editadas no México e de ter integrado as equipas dos programas ZAPPING, FENóMENO e SERVIÇO PÚBLICO. Depois da Mínima Ideia tornou-se o mais recente associade das Produções Fictícias - o seu sonhe dos 18 anos - onde finalmente se convenceu que é mesmo a escrevê que vai ganhá o seu sustente. Acha q'a vida lhe 'tá a rendê, e que é um rapazinho bem discreto, dos que gosta de ri e deseja casá. Diz que anda praí em ensaies ultra-secretes da banda Hitchcock Sportif, composta por ele, pelo irmão AB, pelo amigo CG e por Johnny Walker.

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